Parteira centenária
“Para ela ser santa não falta nada”,
garantem os vizinhos de dona Maria Luciana de Brito, a famosa “Vó Maria”
do Alto da Alegria, no Rio Vermelho. Filha e neta de escravos, ela
ainda é procurada freqüentemente na sua casinha humilde por pessoas que
recorrem aos seus conhecimentos de parteira e poderes de rezadeira. São,
principalmente, mulheres grávidas apelando para a senhora quase
centenária, que ainda é capaz de reconhecer com os olhos e o tato o
tempo de gravidez e a situação do bebê. Quando possível, ela conserta a
posição da criança e previne cesáreas.
Apesar da lucidez impressionante e do
português rebuscado, a senhora que já realizou partos de algumas
centenas de baianos quase não estudou: apenas 15 dias numa escola no
IAPI, interrompidos pelo tapa de uma professora, que a constrangeu e
humilhou. Segundo ela, lá eles não gostavam de pretos. Algumas décadas
depois, foi convidada pessoalmente por duas médicas para participar de
um curso para parteiras na Maternidade Tsylla Balbino, como
reconhecimento pelo trabalho que já realizava há muito tempo. Ficou
impressionada coma tagarelice das colegas, que discutiam tudo, enquanto
ela preferia ficar calada. “Eu ainda nem aprendi, como é que vou
discutir?”, disse à professora, quando questionada sobre o motivo do seu
silêncio.
O ofício de parteira foi resultado do que
aprendeu com a avó, também “aparadeira”, como ela diz, e como ajudante
de um médico, quando era garota. Vó Maria é baiana de Salvador, de onde
não pretende sair mais. Ela conta que durante o tempo em que morou no
interior, a saudade da sua terra era tão grande que “olhava para os
astros e pedia a Deus para voltar”. Relembrando sem amargura as
histórias contadas pelosa vós que foram escravos, ela diz: “Os criados
eram comprados de uma pessoa por outra, trabalhavam na roça, faziam tudo
que os donos mandavam”. Quando ficaram livres, os avós foram morar na
Liberdade, onde “só tinha africano”. O seu pai era um deles: “Veio da
África pequenininho, nas costas da minha avó”. José Camilo, seu pai, foi
escravo, mas a mãe, Maria Alexandrina, teve mais sorte. Sobre o
paradeiro do pai, ela não tem notícia. O que sabe é que por volta dos 16
anos já estava de volta a Salvador e sozinha, responsável pelo próprio
destino. Depois de criar a filha sozinha, a mãe de Vó Maria seguiu para
Sauípe com um novo amor.
Vó Maria garante que é uma mulher muito
sadia e apenas enfraqueceu um pouco “com o repuxo do trabalho”. Dona
Paixão, uma vizinha amiga de quem Vó Maria fez quatro partos, prepara
todas as suas refeições diariamente, e cada um que a visita colabora com
o que pode: um pouco de dinheiro para pagar as contas, uma fruta. Na
casinha onde mora – que construiu com o que conseguiu economizar
trabalhando como parteira, lavadeira e até baiana de acarajé – suas
únicas companhias são três cadelas.
Sobre o apelido de avó, ela explica:
“Tenho um amor aos meninos como não tem igual. Por onde andei fui
deixando netos: Itapuã, São Cristóvão, Vale das Pedrinhas, Brotas”.
Viúva de um casamento que durou 25 anos e não deixou filhos – os dois
morreram ainda bebês -, ela garante que a solidão é uma opção, um
privilégio que pediu a Deus. Assim como a ausência de aposentadoria,
pois “quem se aposenta morre cedo”. Sobre o motivo de tanta longevidade e
bom humor, ela explica: Quando você fica querendo muito as coisas, não
dá certo. O melhor é não ter pressa. Devagar você consegue tudo”.
(A primeira versão desse texto foi escrita e publicada em 2000)
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