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segunda-feira, 4 de março de 2013

Parteira centenária

Parteira centenária

Foto de Haroldo Abrantes
                                             
“Para ela ser santa não falta nada”, garantem os vizinhos de dona Maria Luciana de Brito, a famosa “Vó Maria” do Alto da Alegria, no Rio Vermelho. Filha e neta de escravos, ela ainda é procurada freqüentemente na sua casinha humilde por pessoas que recorrem aos seus conhecimentos de parteira e poderes de rezadeira. São, principalmente, mulheres grávidas apelando para a senhora quase centenária, que ainda é capaz de reconhecer com os olhos e o tato o tempo de gravidez e a situação do bebê. Quando possível, ela conserta a posição da criança e previne cesáreas.
Apesar da lucidez impressionante e do português rebuscado, a senhora que já realizou partos de algumas centenas de baianos  quase não estudou: apenas 15 dias numa escola no IAPI, interrompidos pelo tapa de uma professora, que a constrangeu e humilhou. Segundo ela,  lá eles não gostavam de pretos. Algumas décadas depois, foi convidada pessoalmente por duas médicas para participar de um curso para parteiras na Maternidade Tsylla Balbino, como reconhecimento pelo trabalho que já realizava há muito tempo. Ficou impressionada coma  tagarelice das colegas, que discutiam tudo, enquanto ela preferia ficar calada. “Eu ainda nem aprendi, como é que vou discutir?”, disse à professora, quando questionada sobre o motivo do seu silêncio.
O ofício de parteira foi resultado do que aprendeu com a avó, também “aparadeira”, como ela diz, e como ajudante de um médico, quando era garota. Vó Maria é baiana de Salvador, de onde não pretende sair mais. Ela conta que durante o tempo em que morou no interior, a saudade da sua terra era tão grande que “olhava para os astros e pedia a Deus para voltar”. Relembrando sem amargura as histórias contadas pelosa vós que foram escravos, ela diz: “Os criados eram comprados de uma pessoa por outra, trabalhavam na roça, faziam tudo que os donos mandavam”. Quando ficaram livres, os avós foram morar na Liberdade, onde “só tinha africano”. O seu pai era um deles: “Veio da África pequenininho, nas costas da minha avó”. José Camilo, seu pai, foi escravo, mas a mãe, Maria Alexandrina, teve mais sorte. Sobre o paradeiro do pai, ela não tem notícia. O que sabe é que por volta dos 16 anos já estava de volta a Salvador e sozinha, responsável pelo próprio destino. Depois de criar a filha sozinha, a mãe de Vó Maria seguiu para Sauípe com um novo amor.
Foto de Haroldo Abrantes

                                                     
Vó Maria garante que é uma mulher muito sadia e apenas enfraqueceu um pouco “com o repuxo do trabalho”. Dona Paixão, uma vizinha amiga de quem Vó Maria fez quatro partos, prepara todas as suas refeições diariamente, e cada um que a visita colabora com o que pode: um pouco de dinheiro para pagar as contas, uma fruta. Na casinha onde mora – que construiu com o que conseguiu economizar trabalhando como parteira, lavadeira e até baiana de acarajé – suas únicas companhias são três cadelas.
Sobre o apelido de avó, ela explica: “Tenho um amor aos meninos como não tem igual. Por onde andei fui deixando netos: Itapuã, São Cristóvão, Vale das Pedrinhas, Brotas”. Viúva de um casamento que durou 25 anos e não deixou filhos – os dois morreram ainda bebês -, ela garante que a solidão é uma opção, um privilégio que pediu a Deus. Assim como a ausência de aposentadoria, pois “quem se aposenta morre cedo”. Sobre o motivo de tanta longevidade e bom humor, ela explica: Quando você fica querendo muito as coisas, não dá certo. O melhor é não ter pressa. Devagar você consegue tudo”.
(A primeira versão desse texto foi escrita e publicada em 2000)

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