Mudando o rumo da história
Agnes Mariano
Ainda era cedo. Os portões da Faculdade de Medicina
da Bahia nem tinham sido abertos, mas já havia um movimento intenso de
estudantes no Terreiro de Jesus. É que eles ardiam em curiosidade para
conhecer o resultado do concurso para professor que, finalmente, seria
divulgado. Os estudantes tinham acompanhado tudo de perto, lotando o
salão nobre em cada uma das fases: prova prática, de didática e defesa
de tese. O objetivo era evitar “marmelada”, afinal, eles sabiam que não
seria fácil para o jovem médico negro Juliano Moreira vencer um concurso
numa instituição com fama de racista, frente a uma banca examinadora
majoritariamente escravocrata. A libertação dos escravos, com a
assinatura da Lei Áurea, tinha acontecido há apenas oito anos. Foi por
isso que, naquela manhã de maio de 1896, quando finalmente entraram no
prédio, os futuros médicos mal puderam acreditar no resultado afixado no
mural: ao todo, Juliano tinha recebido 15 vezes a nota 10. A vaga era
dele.
Aquele foi um dia memorável para todos os estudantes,
que comemoraram até altas horas a vitória do mérito sobre o
preconceito. Juliano era famoso e querido desde os tempos de estudante,
por sua modéstia e genialidade: tinha concluído o curso de medicina com
apenas 18 anos de idade, com uma tese que se tornou conhecida
internacionalmente. Agora, com apenas 23 anos, tinha conseguido superar
concorrentes poderosos e se tornava o mais novo professor da faculdade.
Mas, para esse rapaz – filho de uma doméstica e de um funcionário da
prefeitura, que só assumiu o filho quando ficou viúvo -, a Bahia foi só o
começo. Não demorou muito para ele ganhar o mundo e tornar-se o mais
importante psiquiatra brasileiro. A história de Juliano, resgatada pelo
psiquiatra e professor Ronaldo Jacobina, ao contrário do que se pensa,
não foi um exemplo isolado. Mesmo antes da abolição da escravatura,
muitos outros negros e mulatos também conseguiram vencer obstáculos que
pareciam intransponíveis e entrar para a galeria dos mais importantes
engenheiros, advogados, cientistas sociais e médicos do Brasil. Mudar o
passado era impossível, mas o futuro, eles sabiam, dependia do que cada
um fizesse.
Na Brasil de antigamente, estudar era difícil para
qualquer um. Portugal fez tudo o que pôde para retardar o
desenvolvimento científico na sua colônia. Era proibido abrir
faculdades, imprimir jornais e livros. As poucas escolas não eram
reconhecidas por Lisboa e as instituições que existiam limitavam-se ao
aprendizado artesanal, das “belas letras” ou estudos teológicos. As
coisas começaram a mudar quando a família real precisou refugiar-se no
Brasil, em 1808. De um dia para o outro, passou a ser importante tornar o
ambiente mais agradável, civilizado, suportável. Ao longo do século
XIX, as alterações no sistema educacional foram contínuas, mas ainda
insuficientes para mudar o quadro. O censo de 1870 informa: cerca de 85%
dos brasileiros eram analfabetos. Claro, a situação era especialmente
grave entre os negros e pior ainda entre os escravos. Havia até uma lei
proibindo estes últimos de estudar.
Quem era rico apelava para os colégios
internos e depois mandava seus filhos para Coimbra ou Lisboa,
atravessando o Atlântico por algumas semanas. Quem não tinha recursos,
precisava disputar uma das pouquíssimas vagas nas escolas locais e então
prestar o vestibular em alguma das faculdades que, lentamente,
começavam a surgir: Medicina, Direito, Filosofia, Belas Artes,
Politécnica, Odontologia, Farmácia e Ciências Econômicas.
-
Estudar era um luxo. Mesmo depois de 1827, quando o Império decreta a criação de escolas primárias em todas as cidades, o sistema era precário, muitas funcionavam na varanda ou sala da casa do professor, quando havia – explica a pedagoga e professora Jaci Menezes, da Universidade do Estado da Bahia.
Como era preciso ter dinheiro e tempo livre para
estudar, as únicas opções eram conseguir apoio de alguém ou
escolarizar-se por conta própria. Para se sustentar, quem tinha muita
sorte ingressava no funcionalismo público ou, então, aprendia um ofício
manual: sapateiro, pedreiro, pintor, marceneiro.
Essas eram as opções possíveis e foi por esses
caminhos tortuosos que eles conseguiram o sucesso. O pintor, professor,
jornalista, artista plástico e funcionário público Manoel Querino –
autor de trabalhos pioneiros na antropologia e história da arte – e o
escrevente, advogado e parlamentar Antonio Pereira Rebouças foram
autodidatas. O engenheiro, geógrafo, cartógrafo, geólogo e historiador
Teodoro Sampaio e o engenheiro, abolicionista e escritor André Rebouças –
construtor das primeiras docas do país e autor de propostas
reivindicando reforma agrária e escolarização para os ex-escravos –
estão entre os que tiveram a sorte de obter uma formação de qualidade
com a ajuda de familiares. Já o psiquiatra Juliano Moreira e o pediatra
Martagão Gesteira cresceram, se formaram e se destacaram na Bahia, sendo
depois convidados para projetos de âmbito nacional.
Nada de lamentações, complexos, receios ou
hesitações. A história desses homens e algumas mulheres é marcada pela
disposição para viver o seu tempo, enfrentando o que fosse necessário.
Desejando ser acima de tudo cidadãos brasileiros, não esqueceram de
trabalhar em prol de quem mais precisava: o povo. Também não se fecharam
em guetos: tiveram amigos e amores de todas as cores e classes. Frente
às injustiças e aos preconceitos que ameaçaram obstruir os seus
caminhos, eles agiram com elegância e energia. Em 1685, um grupo de
“moços pardos” baianos mandou um ofício diretamente para a corte
portuguesa, reivindicando o direito de freqüentar o Colégio dos
Jesuítas, única instituição de ensino na época. E conquistaram esse
direito, conta Jaci Menezes. Em 1960, o geógrafo Milton Santos também
precisou solicitar à justiça que garantisse a realização de um concurso
para professor na Faculdade de Filosofia da Universidade da Bahia. O
diretor tinha suspendido o concurso para evitar que Milton ingressasse
na universidade, conta a geógrafa e professora Maria Auxiliadora Silva.
Foi passando, então, pelas escolas disponíveis e
completando a sua formação com o acervo de bibliotecas, viagens e
experiência de vida, que esses jovens se tornaram profissionais
brilhantes e cidadãos úteis. Médicos como os irmãos George e Cleonice
Alakija ou Perceval e Esmeralda Vasconcelos, escritores como Édison
Carneiro. Foram brilhantes e corajosos, mas também tiveram sorte,
porque, na Bahia e no Brasil, o funil do acesso à educação de qualidade
era e continua muito estreito. Até hoje.
HOMENS DAS LETRAS
Filho de operário deveria ser operário, filho de
pobre deveria ser pobre. Com a vida difícil que se levava naquele tempo,
como uma pessoa de origem humilde podia pensar em gastar horas na
frente de um livro? Quase todo mundo concordava com esse princípio, mas
havia quem tivesse a ousadia de discordar. Em geral, eram membros de
famílias que já tinham conquistado a liberdade antes da abolição e
estavam, há algumas gerações, em busca de prosperidade e instrução. Na
Bahia do século XIX, a grande aspiração era tornar-se bacharel e foi
dessa forma, tornando-se hábil na relação com as palavras escritas e
faladas, que começou a ascensão de muitos negros e mulatos.
O calor de Salvador era o mesmo de hoje em dia, mas
os bacharéis não se importavam e enfrentavam as ruas com suas bengalas,
guarda-chuvas e ternos. Além do figurino, a marca dos bacharéis era o
palavreado rebuscado, lapidado em anos de estudos, e o gosto pelas leis.
O risco de perder-se em discursos vazios – cultivando apenas o amor à
eloqüência e à verborragia – era grande e a maioria não foi além disso.
Alguns, entretanto, souberam usar o seu domínio das palavras de forma
proveitosa. Autodidatas ou não, alguns advogados, jornalistas,
escritores e professores dessa época conseguiram ajudar muitas pessoas,
envolveram-se em causas importantes e realizaram valiosos estudos sobre
aspectos da nossa história e costumes que permaneciam desconhecidos até
então.
Os irmãos Rebouças nasceram ainda no tempo das
escolas de primeiras letras e aulas régias, criadas pelo Marquês de
Pombal após a expulsão dos jesuítas. A escola primária, até que eles
conseguiram cursar – em Maragogipe, onde viviam -, mas as “aulas régias”
eram só para quem sonhasse com estudos mais avançados em Portugal.
Filhos do alfaiate Gaspar Rebouças e de Rita Basília, esses rapazes
mulatos – José, Antonio, Manuel Maria e Manuel Maurício – tinham os pés
no chão e logo pararam de freqüentar a escola para trabalhar. Mas não
pararam de estudar. Antonio e Manoel Maurício conseguiram emprego como
escreventes de um cartório e fizeram desse trabalho a sua escola. Por
enquanto, vamos nos deter apenas na trajetória de Antonio, que,
“compulsando autos, lendo processos, foi-se apaixonando por tudo que
dizia respeito a leis, começando a estudar o assunto em obras
emprestadas ou adquiridas”, conta o historiador Loureiro de Souza, no
livro Baianos Ilustres.
Aos poucos, ele foi ganhando coragem e começou a advogar na condição de rábula1.
O seu talento era tamanho que, em alguns anos, Antonio tornou-se
secretário de governo, elegeu-se deputado duas vezes, recebeu o direito
de advogar em todo o território nacional e foi nomeado conselheiro do
imperador D. Pedro II, passando a residir no Rio de Janeiro. São famosas
as suas intervenções em temas polêmicos, que lhe custaram muitas
perseguições: contra a pena de morte, os traficantes de escravos da
Bahia e os falsificadores de moedas. Como se não bastasse, Antonio foi
também o pai de André Rebouças, um dos homens mais atuantes do seu
tempo, como engenheiro e abolicionista.
Outro rábula mulato que fez história foi o major
Cosme de Farias. Nascido em 2 de abril de 1875, em São Tomé de Paripe,
Subúrbio de Salvador, ele foi também jornalista, poeta, funcionário
público, deputado estadual e vereador. Nessa época, lembra Jaci Menezes,
já existia o Liceu Provincial.
-
Que depois passou a se chamar Colégio Central e foi a única escola pública de ensino secundário na Bahia, de 1837 até o começo do século XX.
Mas, provavelmente por falta de recursos, Cosme de
Farias só estudou mesmo até o primário, na escola do professor Benvindo
Alves Barbosa, na freguesia da Conceição da Praia, e completou a sua
formação na vida.
Quem tem mais de 40 anos, certamente ouviu falar de Cosme, que faleceu às vésperas de completar 97 anos.
-
Eu cheguei a conhecê-lo. Ele aparecia em todas as solenidades cívicas com um caminhão escrito “Abaixo o analfabetismo”. Tinha o dom da oratória e era de uma bondade incrível. Eu vi uma pessoa chegar até ele, dizendo que precisava de um cinto. Ele tirou o próprio cinto e deu. Depois amarrou a calça com um barbante e seguiu em frente – conta o engenheiro, escritor e poeta José Carlos Limeira.
Na sua cruzada pela educação, Cosme fundou e dirigiu a
Liga Baiana contra o Analfabetismo, mandou imprimir e distribuiu
milhares de cartilhas, manteve várias escolas primárias, arrecadou e
doou material escolar.
Advogando, Cosme defendeu milhares de réus pobres e nunca acusou nenhum. Segundo Jorge Amado, em Bahia de Todos os Santos:
- [...] seu escritório de advocacia, uma pequena porta na oficina de um remendão de sapatos, era, sem dúvida, o mais movimentado do Brasil. Ali, ele redigia com a letra grossa, desigual e difícil as razões dos seus clientes gratuitos.
E, para completar a sua batalha, publicava nos
jornais da época a coluna “Linhas Ligeiras”, onde fazia apelos,
comentários e críticas, lembra Amado. Das prisões, delegacias e jornais,
Cosme chegou aos palanques, mantendo-se sempre fiel à sua luta pelos
pobres. Não é à toa, então, que o bairro onde ele morava ganhou o seu
nome.
Entre os autodidatas do século XIX, Manuel Raimundo
Querino certamente foi o mais renascentista de todos. Sempre escrevendo,
discursando ou desenhando, atuou como pintor, decorador, designer,
projetista, político, jornalista e escritor. Mas foram as suas pesquisas
e artigos sobre a cultura negra na Bahia que o imortalizaram.
Registrando costumes e recolhendo depoimentos ao longo de toda a vida,
Querino foi um dos pioneiros da antropologia nacional. Ouvindo os
últimos homens e mulheres que tinham lembranças da África, ele evitou
que informações preciosas se perdessem no tempo. E, sendo ele próprio
negro, introduziu um elemento importante na forma de tratar esses
assuntos: o respeito.
Foi um professor da Escola Normal, o
bacharel Manuel Garcia, quem acolheu o menino Manuel Querino. Com apenas
4 anos de idade ele tinha ficado órfão. Seu pai, um carpinteiro, e sua
mãe foram vítimas da epidemia de cólera que atingiu Santo Amaro em 1855,
explica o artista plástico e professor Jaime Sodré, autor do livro Manuel Querino, um Herói de Raça e Classe.
Aos 17 anos, com sede de aventura, alistou-se como recruta. Depois de
passar por Pernambuco e Piauí, acabou envolvido com a Guerra do
Paraguai, mas escapou de ir parar na linha de frente por causa da boa
caligrafia e corpo franzino: preferiram aproveitá-lo como escriba do
batalhão.
Quando conseguiu voltar à Bahia, empregou-se como
pintor e estudava à noite: português, francês e desenho, sua grande
paixão. Primeiro no Liceu de Artes e Ofícios e depois na Academia de
Belas Artes. Criado em 1872, o objetivo do Liceu era “dar educação
profissional e literária” aos filhos dos artífices, explica Sodré,
enquanto a academia, fundada cinco anos depois, por um dos professores
do Liceu, o espanhol Miguel Cañizares, tinha uma pretensão assumidamente
artística. Não restaram registros da obra artística de Querino, mas ele
deixou livros fundamentais para os interessados em história da arte – Artistas Bahianos -, com biografias de artistas de várias épocas e também As artes na Bahia, com uma coleção de artigos publicados em jornal.
A paixão pelo desenho e pintura foi só um dos seus
interesses. Além de dar aulas de desenho e prosseguir com o seu trabalho
como pintor, Querino envolveu-se na política. Engajou-se no movimento
abolicionista, participando de reuniões, escrevendo artigos, e foi
membro da Sociedade Protetora dos Desvalidos, que comprava alforrias. Em
seguida, naquele delicado momento de “transição do regime escravocrata
para um novo”, como define Sodré, Querino trabalhou ativamente pela
causa trabalhista. Fundou dois jornais, foi sua a ideia da criação do
Partido Operário e participou da Liga Operária Baiana. Daí chegou à
Câmara Municipal, onde teve um mandato.
O reconhecimento da obra de Querino só veio, e ainda
timidamente, após a morte. Em vida, sobreviveu como funcionário da
Secretaria da Agricultura, “onde foi consecutivamente preterido em todas
as ocasiões em que lhe era de justiça a promoção”, afirma Arthur Ramos,
organizador do seu livro Costumes Africanos no Brasil,
publicado postumamente. Quem melhor caracterizou a importância e
desconhecimento em relação à obra de Querino foi Jorge Amado, que se
inspirou nele para criar um dos seus melhores personagens: Pedro
Archanjo, o funcionário público que ousava escrever sobre costumes
afro-baianos contradizendo o grande sábio da época. Esse foi, de fato,
um dos méritos de Querino, trazer um olhar novo sobre essas questões,
que vinham sendo tratadas principalmente pelo médico Nina Rodrigues, um
homem dedicado, mas que compartilhava, em boa medida, dos preconceitos
da sua época. Querino criou seus próprios métodos, arriscou-se, acertou,
errou, mas fez tudo com a sensibilidade que só os grandes pesquisadores
sabem ter.
ENGENHEIROS DO BRASIL
O autodidatismo até que podia funcionar no
aprendizado das letras, mas como aprender a erguer pontes, construir
portos e redes hidráulicas sem estudar em boas escolas? Na Bahia do
século XIX, os mestres-de-obras eram os construtores mais qualificados e
alguns deles, como Manuel Friandes, se destacaram bastante: foram obras
dele, por exemplo, o Mercado do Ouro, a fábrica do Curtume Cabrito e a
Igreja da Lapinha que, segundo a tradição oral, mais parece uma mesquita
pelo fato do construtor ser de origem malê, isto é, africano islâmico.
Para aprender mais, entretanto, o jeito era ir para a capital do país, o
Rio de Janeiro, e estudar engenharia. Esse foi o percurso dos baianos
Teodoro Sampaio e André Rebouças que, além de engenheiros brilhantes,
também foram cidadãos de um civismo incomum.
Pouca gente sabe, mas o baiano André
Rebouças foi um dos mais importantes mentores do movimento abolicionista
brasileiro. André não era um grande orador, nem político, mas
“encarnou, como nenhum outro de nós, o espírito antiescravagista,
sacrificando tudo, sem exceção, que lhe fosse contrário ou suspeito”,
definiu Joaquim Nabuco, em seu livro Minha formação. A proposta
de André Rebouças era muito mais ampla do que apenas a libertação:
produziu livros e documentos mostrando a necessidade de mudar a
estrutura agrária do país, da doação de terras para os libertos, da
educação técnica e industrial para os filhos dos lavradores, enumera
Jaci Menezes. Tudo isso, vindo de um homem que poderia ter se perdido
nas delícias da corte, pois tinha acesso irrestrito à família imperial
desde a infância ou sucumbido ao charme da Europa, para onde viajou
várias vezes. André, entretanto, só se devotou ao interesse público, às
causas sociais, a trazer progresso para o Brasil.
Filho primogênito do conselheiro Antonio Rebouças –
conhecido como “representante da população mulata” -, André nasceu em
Cachoeira, em 1838. Por causa das perseguições que seu pai sofria, a
família precisou se mudar e, com apenas 8 anos, já estava morando no
Rio. O que acabou sendo vantajoso, pois ele pôde ter acesso a boas
escolas e professores. Com 22 anos se formou em engenharia e, dispondo
de uma bolsa, logo em seguida foi para Europa completar os estudos. Lá,
estudou com afinco o que havia de mais novo: fundações com ar
comprimido, engenharia de viadutos, construção de diques e vias férreas.
Do ano seguinte, quando retornou ao Brasil, até o final da sua vida,
André empenhou-se em numerosos trabalhos de engenharia por todo o país
que o credenciaram como um dos mais importantes engenheiros que o Brasil
já teve.
Apesar das boas relações, seu pai sempre
teve uma situação financeira delicada e foi com muito esforço que André
conseguiu ir aprimorando a sua formação de engenheiro, no Brasil e
exterior, e crescer profissionalmente, com a implantação pioneira de
técnicas e equipamentos na construção civil nacional. Nesse campo, atuou
como engenheiro e empresário – projetando e acompanhando obras em
vários estados brasileiros, principalmente no setor portuário e obtendo
financiamentos com o capital nacional ou estrangeiro – e como professor
ativo na Escola Politécnica. A parte mais difícil, entretanto, era lidar
com os trâmites políticos, com as barreiras burocráticas e perseguições
orquestradas por ministros, parlamentares e empresários concorrentes,
que tentaram derrubá-lo, inclusive com campanhas difamatórias que
apelavam até para o preconceito racial.
Depois de alguns anos, André diminuiu a sua atuação
como empresário, mas já tinha conquistado então prestígio político, boa
situação financeira e trazido grandes contribuições à engenharia
brasileira. Ele construiu, por exemplo, as primeiras docas do Rio de
Janeiro, Bahia, Pernambuco, Paraíba e Maranhão – junto com seu irmão,
Antonio Rebouças Filho, também engenheiro -, fez o sistema de
abastecimento de água do Rio e implantou núcleos coloniais na região
sul, enumera o pesquisador Nei Lopes em Bantos, malês e identidade negra.
Antonio foi o responsável, por exemplo, pela construção da Estrada de
Ferro Curitiba – Paranaguá, uma obra considerada, na época, impossível
de ser realizada.
O interesse por questões sociais e econômicas sempre
existiu. Desde a década de 1860, por exemplo, André já tinha propostas
sobre a emancipação dos escravos. Mas foi principalmente depois de ver
de perto os horrores de que os homens são capazes na Guerra do Paraguai
(1864 a 1870), que as causas sociais ganharam maior peso na sua vida.
Tornou-se professor, escrevia para jornais, conseguiu que fosse
construída uma escola noturna para trabalhadores e intensificou o seu
engajamento na campanha abolicionista. Não media esforços como
intelectual, articulador político e financiador, atuando com seus
artigos em jornais, arregimentando aliados importantes, organizando
eventos, seminários, participando de congressos, além de ser o mentor de
um grupo cujo nome mais conhecido é o de Joaquim Nabuco.
“Quem possui a terra, possui o homem”,
escreveu André Rebouças em 1890. Nesta frase, ele sintetizava a sua
concepção de que a efetiva integração social dos ex-escravos e a
prosperidade do Brasil dependiam fundamentalmente da modificação da
nossa estrutura fundiária, com a implantação da reforma agrária no país,
acompanhada de incentivos e tecnologia. Como sempre fazia, dedicou-se
exaustivamente ao tema, produzindo uma proposta detalhada e ampla,
conhecida como “Democracia Rural Brasileira”. Por conta do seu hábito de
escrever, André Rebouças produziu um vasto material que esclarece
detalhes da sua vida, seus pensamentos, da época e das personalidades
com quem conviveu. Nas últimas décadas, alguns pesquisadores produziram
livros baseados nesse acervo, sendo um dos mais consistentes André Rebouças – Reforma & Utopia no Contexto do Segundo Império,
da historiadora Joselice Jucá, já falecida, que teve acesso irrestrito
aos diários, correspondências, manuscritos, artigos e livros de
Rebouças.
Segundo Jucá, os pontos centrais da
proposta de Rebouças eram a eliminação dos latifúndios, que seriam
divididos em propriedades menores, de 20 hectares, e a “centralização
agrícola”, um sistema coletivista para organização, beneficiamento da
produção e aperfeiçoamento. Isto é, um grupo de pequenas fazendas
organizadas em torno de uma “fazenda central”, que seria responsável
pelo aperfeiçoamento tecnológico (dispondo inclusive de engenheiros),
processamento industrial (para beneficiar a produção antes da venda) e
escoamento da produção. Ele tratou ainda, detalhadamente, do papel do
governo, capital externo, exportação, juros, impostos, necessidade da
educação e até previu os problemas sociais que surgiriam se nada fosse
feito e a população se tornasse um batalhão de sem terras. Isto é:
ex-escravos negros e os novos “escravos brancos”, como os imigrantes
pobres importados pelos fazendeiros de café com falsas promessas.
- A escravidão não está no nome, mas sim no fato de usufruir o trabalho de miseráveis pagando apenas o estrito necessário para não morrer de fome. Aviltar e minimizar o salário é reescravizar – dizia Rebouças.
Com a Proclamação da República, o golpe dos militares
em 15 de novembro, apoiados pelos proprietários de terras temerosos de
que se expandissem as reformas deflagradas com o 13 de maio, terminou a
Monarquia no Brasil. Amigo íntimo da família real, principalmente de D.
Pedro II, André os seguiu, indo morar na Europa. Preferiu partir, tanto
por sua repulsa ao militarismo, quanto para acompanhar seus amigos no
exílio. Da Europa, continuou acompanhando os acontecimentos e escrevendo
em jornais. Nos seus últimos anos de vida, seu interesse estava voltado
para as colônias portuguesas na África, onde descobriu problemas
similares aos brasileiros e lutou para implantar a sua Democracia Rural.
Viveu lá por seis anos, até que, em 1898, foi encontrado morto, ao pé
de um rochedo, num acidente nunca explicado, que foi interpretado por
muitos como suicídio. No Brasil, as duas maiores capitais homenageiam os
irmãos Rebouças, com a Avenida Rebouças, em São Paulo, e os túneis
André Rebouças e Antonio Rebouças, no Rio de Janeiro. Mas para a maior
parte dos brasileiros, inclusive os bem informados, André Rebouças ainda
é um desconhecido.
TEODORO
A história de Teodoro Sampaio não teve um final tão
trágico, mas é igualmente surpreendente. O bebê nasceu em 1855, numa
encantadora região do Recôncavo baiano, na fazenda Canabrava, onde hoje
há um município chamado Teodoro Sampaio que, na época, fazia parte de
Santo Amaro da Purificação. Entre os pesquisadores, quase todos
concordam que a sua mãe era escrava e se chamava Domingas da Paixão.
Quanto ao pai, há dúvidas: o senhor de engenho Francisco da Costa Pinto,
ou o irmão deste, Manuel Lopes, mais conhecido como Visconde de
Aramaré. Há outras versões, atribuindo a paternidade a religiosos: ou o
padre Joaquim Pinto, responsável pela capela do engenho, ou o padre
Manuel Fernandes Sampaio. Esta última versão é a defendida pelo
historiador José Carlos Barreto de Santana, que prepara uma biografia de
Teodoro.
O fato é importante é que, desde cedo, cuidaram da
instrução do garoto. A iniciação escolar aconteceu da forma mais comum
nas fazendas: com o capelão, no caso, o padre Joaquim Pinto. “Os livros
não eram muitos; supprimiam-nos as cartas de mão, como ainda hoje se
pratica no longínquo interior”, contou o próprio Teodoro, que estudou
ainda no colégio do professor José Joaquim dos Passos, em Santo Amaro.
Tudo indica que um dos padres, sendo transferido para São Paulo, levou o
garoto. Teodoro foi enviado para um colégio interno em São Paulo e
depois para o Rio de Janeiro, onde estudou no Colégio São Salvador.
Vivendo numa terra estranha, mas determinado, ele
seguiu nos estudos até matricular-se na Escola Politécnica Fluminense,
em 1872. Enquanto estudava, deu aula em várias escolas e, aos 22 anos,
já estava formado em engenharia civil. A sua primeira providência, conta
Nei Lopes, foi retornar à Bahia e comprar a alforria da mãe. Também
conseguiu comprar ou intermediar a compra da alforria dos irmãos.
Iniciou a sua carreira em São Paulo, mas em breve estava de volta ao
Nordeste: integrado à equipe da “Comissão Hidráulica”, coordenada pelo
engenheiro Milnor Roberts. O objetivo era estudar e projetar melhoras no
porto de Santos e no rio São Francisco. A equipe começou a viagem por
Alagoas e, de lá, seguiu até Minas Gerais, refazendo toda a trajetória
do rio e redescobrindo o Brasil. Os sertões, veredas e chapadões, os
povoados e suas histórias emocionaram o jovem engenheiro, que registrou
minuciosamente tudo o que viu em suas famosas cadernetas.
As anotações geraram o livro O Rio São Francisco e a Chapada Diamantina,
com informações históricas e geológicas, dezenas de mapas inéditos e a
nomeação para ser o primeiro engenheiro da Comissão de Melhoramentos do
Rio São Francisco. Isto, depois de superar muitas dificuldades.
Demonstrando o que enfrentava um negro naquela época, o historiador
Santana narra, por exemplo, um episódio da Comissão Hidráulica. Apesar
de ter sido convidado para integrar a equipe e participado da
apresentação do projeto, feita pelo ministro, o nome de Teodoro foi
omitido na lista dos engenheiros nomeados publicada no Diário Oficial. A
omissão foi iniciativa de um oficial de gabinete do ministério, que
temia constranger os engenheiros americanos com a presença de um negro.
Problema sanado, Teodoro trabalhou durante dois anos no projeto, mas,
quando o projeto terminou, “aquele que foi considerado por Rudolf
Wiezer, ajudante de Milnor Roberts, ‘the best brazilian engineer in
Mister Robert’s staff’ continuaria tendo um tratamento diferente em
relação aos demais integrantes da Comissão, que tiveram imediatamente
garantidos empregos e promoções. Decorridos seis meses, a única proposta
de trabalho seria recusada por ser considerada um rebaixamento”, contou
Santana em seu texto “Os engenheiros Euclides da Cunha e Teodoro
Sampaio”.
Como aliados, Teodoro tinha a sua competência e
alguns amigos. Segundo Santana, a amizade com o diretor da Sessão de
Mineralogia e Geologia do Museu Imperial (atual Museu Nacional), Orville
Derby, foi de fundamental importância para o engenheiro, tanto pelas
trocas intelectuais, quanto pelos conselhos e intervenções. Em
contrapartida, Teodoro também ajudou muitas pessoas. Euclides da Cunha,
por exemplo, recorria a ele semanalmente para ajustes no texto de Os Sertões,
que Teodoro ouvia com prazer, por relembrar de um cenário tão querido e
pela denúncia sobre o que tinha acontecido em Canudos. Antes mesmo da
partida para Canudos, Teodoro já tinha ajudado Euclides, cedendo-lhe
anotações sobre o sertão e mapas inéditos da região: “Trecho de sertão
ainda muito desconhecido”, conta o engenheiro.
Teodoro adorava São Paulo. Foi por isso que
permaneceu por tanto tempo: “Os affazeres me obrigavam e os affectos
daquelle povo progressista me prendiam”. Participou de várias comissões
governamentais, como a que realizou o levantamento da carta geológica do
estado e foi o diretor de saneamento de São Paulo. Também trabalhou em
outros lugares, como na reforma urbanística do Rio de Janeiro. Como
homenagem ao seu trabalho, existe na capital, no bairro de Pinheiros,
uma importante avenida chamada Teodoro Sampaio. Na região oeste do
estado há também um município com o seu nome.
Contratado pela prefeitura de Salvador,
em 1904, Teodoro retornou à Bahia. Ele nunca tinha cortado os laços com a
cidade e seu filho, inclusive, é baiano, fruto da sua união com
Capitolia Maia Sampaio, conta Loureiro de Souza. Apesar de todo o
carinho que tinha por Salvador, Teodoro também não deixava de criticar o
seu “aspecto decadente” e suas “velharias arraigadas”. Trabalhou o
quanto pôde para trazer um sopro de renovação à cidade, atuando em
várias áreas. Como engenheiro, promoveu reformas urbanísticas,
arquitetônicas, como o prédio da antiga Faculdade de Medicina e cuidou
do saneamento da cidade.
Ele encontrava tempo ainda para ser sócio honorário e
orador oficial do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, onde
realizou discursos como este, em 1919, pronunciando-se contra uma
resolução racista:
- Não pode haver desmentido mais formal ao ideal de paz e de fraternidade humana, que se quer assentar com a Liga das Nações do que essa doutrina de desegualdade das raças, agora triumphante no seio da Conferência.
Teodoro também teve sua experiência política,
elegendo-se deputado federal. Um episódio triste e marcante foi a morte
do filho, um engenheiro de apenas 34 anos, que já tinha realizado vários
trabalhos e estava atuando na recém criada Escola Politécnica da Bahia.
Ainda que fosse negro, sendo um intelectual e profissional liberal bem
sucedido, Teodoro, de certa forma, pertencia à elite. Talvez por isso,
como outros pensadores da época, fez declarações que hoje nos soam
estranhas, demonstrando superestimar o colono europeu e tendo restrições
à imigração negra, como cita a historiadora Wlamyra Albuquerque em seu
livro Algazarra nas ruas:
- Segundo o engenheiro, a imigração negra só deveria se dar através de contratos de trabalho com prazos determinados, desestimulando a permanência destes trabalhadores negros no país. Na opinião de Teodoro Sampaio, eles eram importantes para o trabalho na “zona quente” do país, mas, perguntado sobre a procedência preferencial dos imigrantes para a Bahia, avaliou: “os portugueses, os italianos, e mesmo os alemães podiam bem vingar como colonos…”.
Por outro lado, a educação sempre foi uma das suas
preocupações: “No ensino do povo está a nossa salvação, meus senhores, e
esse ensino, por desgraça nossa, anda, de ha muito, descurado”,
afirmava ele. Pode ser esse o motivo do seu envolvimento tão intenso e
produtivo em tantas áreas, resultando em obras importantes como O tupi na geografia nacional, História da fundação da cidade do Salvador e Atlas dos Estados Unidos do Brasil.
E também a razão de ter sido um dos organizadores da Escola Politécnica
de São Paulo. Em 1937, no Rio de Janeiro, faleceu Teodoro, com 82 anos.
Muitas décadas depois, seus restos mortais, diários e outros textos
foram confiados ao Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, na Praça
da Piedade, em Salvador, onde estão até hoje, servindo como fonte de
pesquisa.
MÉDICOS ILUSTRES
Na Bahia colonial, palavras como saneamento, higiene e
medicina tinham um significado muito diferente do que nós conhecemos
hoje. Pequenas cirurgias e extração de dentes ficavam a cargo dos
barbeiros. Para os remédios, era preciso confiar na inspiração dos
boticários e curandeiros. Mas se a coisa era séria e precisava-se de um
médico, quem tinha dinheiro contratava um doutor formado em Coimbra.
Quem não tinha, podia ir parar na Santa Casa da Misericórdia:
-
Um lugar mais temido que a cadeia, nessa época. A assistência pública era a pior possível. A medicina em Portugal era muito mais atrasada do que no resto da Europa e, na colônia, o desastre era completo – descreve o antropólogo Renato da Silveira.
Por esse quadro, dá para imaginar a importância do
dia em que D. João VI, finalmente, autorizou o funcionamento do Colégio
Médico Cirúrgico, em 1808, transformado depois em Faculdade de Medicina
da Bahia, em 1832. Começou ali uma batalha imensa para organizar
instituições básicas e para que a população mudasse alguns dos seus
hábitos, como a predileção por enterrar mortos dentro das igrejas, o que
proporcionava um cheirinho inconfundível às catedrais baianas. Em seu
livro A morte é uma festa, o historiador João Reis enumera os problemas:
- A lista de maus hábitos era grande e variada: a disposição de lixo nas vias públicas, a falta de escoamento das águas usadas, alinhamento desordenado das ruas, a arquitetura inadequada dos prédios, os hábitos alimentares extravagantes, a indisposição para exercícios físicos e para a higiene pessoal.
Negros e mulatos na Faculdade de Medicina sempre
foram poucos e não é nada difícil encontrar relatos sobre ofensas e
perseguições sofridas, protagonizadas por algum professor elitista. O
que não impediu a presença desses rapazes na escola, como estudantes e
até professores, desde o começo. Os irmãos José e Domingos Melo estão
entre esses pioneiros. Ambos, além de médicos foram professores dessa
instituição no século XIX. Outro médico e professor negro foi Luis
Anselmo da Fonseca. Nascido em Santo Amaro, em 1853, ele foi também um
homem das letras, como era comum entre os médicos da época. Além dos
livros sobre medicina, escreveu trabalhos historiográficos:
-
O seu livro A escravidão, o clero e o abolicionismo é fantástico – assegura o historiador Cid Teixeira.
-
Na verdade, a faculdade continuadora do Colégio Médico-Cirúrgico foi bem mais uma escola de cultura humanística, uma opção universitária para os que não tinham condições para os estudos europeus de Coimbra ou de Montpelier ou para a freqüência dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo.
Alguns, é claro, amavam tanto as letras quanto a
ciência. Um desses foi o médico, deputado, conselheiro e professor
Salustiano Souto, que tinha um alto cargo entre os malês da cidade.
Vindo do interior – Vila Nova da Rainha –, formou-se logo nas primeiras
turmas da faculdade, 1840, e em seu concorrido consultório atendia
pobres e abastados. Solteirão, dedicava-se nas horas vagas a estudos
religiosos, dirigiu por 10 anos o Passeio Público e promovia reuniões
sociais em sua casa, reunindo convidados como Castro Alves e Ruy
Barbosa, conta Cid.
Outro médico ilustre dessa época foi Manuel Maurício
Rebouças, irmão do conselheiro Antonio Rebouças e tio dos engenheiros
André e Antonio Rebouças. Após ter trabalhado como escrevente num
cartório, ao lado do irmão, lutado nas batalhas da Independência e
procurado “em vão por um emprego público”, ele foi para a França, conta o
historiador João Reis. Morou e trabalhou lá por sete anos, conseguindo
estudar letras, ciências e medicina. Como cientista, Maurício produziu o
mais importante trabalho de um brasileiro sobre os enterros nas
igrejas. Nessa época, a medicina ainda tateava, usando mais a intuição
do que método científico, mas o trabalho de Maurício atualizou os
baianos sobre a questão com um oportuno espírito conciliador, que muito
ajudou a resolver o impasse. Dois outros destaques na família são os
seus irmãos José, que se formou em regência na Itália e Manuel Maria,
que, além de músico, foi pedagogo, conta Reis.
Muitos já tinham vindo antes dele, mas Juliano fez
tudo de um modo diferente, pessoal, inovador. As suas grandes marcas
eram a extrema bondade no trato com os pacientes, como atestou o
escritor Lima Barreto, quando passou por uma internação, e a sua
capacidade de trabalho. Juliano aliava uma inteligência incomum com uma
generosidade rara. Quem conta, com empolgação, muitas histórias sobre
Juliano é o psiquiatra e professor Ronaldo Jacobina:
-
O pai dele era um homem simples, mas gostava de ler e foi lendo os jornais que o pai comprava que Juliano começou a sua trajetória.
Ele teve ainda um padrinho importante, o barão de Itapuã, que talvez fosse patrão de sua mãe.
-
Já no Liceu, ele revelou um talento incomum e lhe foi permitido cursar ao mesmo tempo a Faculdade de Medicina, por isso ele se formou tão cedo.
Sendo professor da clínica psiquiátrica e depois
atuando no Hospital Santa Isabel e no Asilo São João de Deus, Juliano se
tornou famoso como psiquiatra, mas também colaborou em outras áreas.
Fez vários trabalhos em dermatologia, inclusive sobre doenças que
afetavam principalmente os escravos e foi pioneiro na implantação de
exames microscópicos e na criação de laboratórios, que quase não
existiam por aqui. Após uma viagem à França e Alemanha, para freqüentar
cursos:
-
Ele introduziu aqui a punção lombar como recurso diagnóstico em neurologia e psiquiatria – cita, como exemplo, Jacobina.
Lendo, falando e escrevendo em cinco línguas,
produzindo dezenas de artigos publicados em vários países, Juliano tinha
como um dos seus maiores prazeres ficar na torre do Solar Boa Vista, de
onde se vê o mar e o Dique do Tororó, discutindo questões médicas com
colegas e alunos. Na época, funcionava lá o asilo que depois passou a se
chamar Hospital Juliano Moreira. Como a sua fama corria mundo, um dia
veio o convite para assumir uma responsabilidade maior: dirigir o
Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. A grande dúvida para
aceitar o convite foi uma razão amorosa:
-
Ele era apaixonado por uma professora primária de Cachoeira, Honorina, que era mulata. Fez até poemas para ela.
Honorina não quis ir para o Rio, mas Juliano foi. Do
outro lado do mundo, no Egito, numa de suas viagens em busca de
tratamento para a sua tuberculose, ele conheceu a mulher com quem se
casou, uma alemã.
Do seu trabalho como psiquiatra, no Rio e na Bahia,
Juliano deixou um saldo de valor inestimável, que influenciou várias
gerações de psiquiatras. Aboliu o uso das camisas e coletes-de-força,
mandou tirar grades das janelas, fundou associações médicas, conhecia
Freud já no século XIX, introduziu novos tratamentos – como a
hidroterapia, a laborterapia e a sonoterapia -, criou um atendimento
especial para crianças com deficiência mental e uma escola para preparar
enfermeiros, conduziu a elaboração de uma classificação brasileira das
doenças mentais. Por tudo isso, e ainda pelos seus pronunciamentos
contra todas as formas de racismo e xenofobia, foi homenageado e
publicado em todo o mundo. Jacobina acrescenta ainda uma última e
importante qualidade do mestre Juliano:
-
Ele era um incrível formador de discípulos. Todos foram pessoas importantíssimas na psiquiatria brasileira. Seus discípulos nunca romperam com ele. Juliano estimulava todos, nunca apagava o brilho de ninguém.
CIENTISTAS DO MUNDO
Com a entrada do século XX, a modernidade invade de
vez a cidade de Salvador. Certo? Muito pelo contrário, porque a Bahia
tinha perdido o bonde da história. Com a proclamação da República e a
política do café-com-leite, são Minas Gerais e São Paulo, estados
exportadores, que assumem a liderança econômica e tornam-se a vanguarda
na educação. A pedagoga Jaci Menezes exemplifica:
-
Em 1872, a Bahia tinha 15.540 matrículas na escola primária e São Paulo tinha 11.520. Já em 1929, a Bahia tinha 114.207 e São Paulo tinha pulado para 426.274. Sem falar na estrutura que eles construíram: algumas escolas eram palácios.
Os baianos já tinham conquistado avanços, é claro,
mas tudo ainda muito lento. O ensino já era seqüencial, passava-se do
primário para o ensino médio e daí, quem pudesse, tentava o vestibular,
com prova escrita e oral. Para fazer gratuitamente o ensino médio havia
duas opções: a Escola Normal, que só formava professores e não dava
acesso ao vestibular, ou o Colégio Central, antigo Liceu Provincial. Só
na década de 40, Anísio Teixeira cria novas escolas, descentralizando o
ensino médio, conta Jaci. As escolas particulares garantiam um controle
maior da clientela, evitando “misturas” e eram a grande opção para quem
vinha do interior, porque muitas delas eram colégios internos. Essa foi a
opção, por exemplo, dos jovens Milton Santos, de Brotas de Macaúbas, e
Martagão Gesteira, de Conceição do Almeida. Eles tinham se separado de
suas famílias por um único motivo: estudar. Se empenharam tanto, que não
pararam nunca mais.
Martagão era mulato. Milton era negro.
Rapazes inteligentes como eram, sempre souberam que melanina não tem
nada a ver com neurônio, caráter ou competência e, assim, trataram
apenas de estudar, sem ligar para preconceitos ainda muito em voga
naquela época. Martagão optou pela medicina e Milton pela advocacia e
jornalismo. Martagão logo cedo descobriu sua vocação para a pediatria e,
em 1911, quatro anos após a sua formatura, já era assistente da clínica
pediátrica cirúrgica e ortopédica. Milton demorou um pouco mais a se
decidir e a descobrir que a sua grande paixão era a geografia. Enquanto
isso, mantinha seu escritório num prédio da Rua Chile e escrevia artigos
para o jornal A Tarde.
Martagão logo se tornou professor da Faculdade de
Medicina e, em 1915, foi aprovado no concurso para catedrático,
defendendo a tese “O exame médico da criança”. A saúde das crianças já
era a sua grande cruzada, por isso, ser apenas professor não bastava.
-
Em torno dele foi se reunindo um grupo de profissionais que pesquisava e trabalhava na mesma área, pessoas como Álvaro da Franca Rocha, Álvaro Bahia, Durval Gama, Hélio Ribeiro, Carlos Levindo, Hosanah de Oliveira, Bráulio Xavier, José Peroba – conta o professor e médico Nelson Barros.
Com esse grupo de médicos, Martagão começou a revolucionar o atendimento pediátrico na Bahia.
Milton também logo começou a se destacar. A essa
altura os pais dele, ambos professores, já tinham vindo morar em
Salvador e montado uma escola na Estrada da Rainha, conta a geógrafa e
professora Maria Auxiliadora da Silva, que trabalhou com Milton por
várias décadas. Além de escrever para o jornal, ele dava aulas na
Universidade Católica de Salvador, até que foi apresentado ao francês
Gean Tricart, que o convidou para fazer um doutorado na Universidade de
Strasbourg. A sua tese se tornou um livro clássico: O centro da cidade do Salvador.
Mesmo assim, ele teve dificuldade para dar aulas na Faculdade de
Filosofia da Universidade da Bahia, quando retornou para cá. Mas, antes
mesmo do impasse ser resolvido, após a morte do diretor que tentava
vetá-lo:
-
O reitor Edgard Santos o convidou para criar um centro de pesquisa – explica Auxiliadora.
Nascia aí o Laboratório de Geomorfologia, que tornou a
Bahia um referencial internacional na pesquisa em geografia por muitos
anos.
Martagão e seus colegas também trabalhavam a todo
vapor. Criaram a Liga Baiana contra a Mortalidade Infantil, com um
consultório para atendimento, e depois a Sociedade de Pediatria da
Bahia. A essa altura, Martagão já tinha ingressado também na
administração pública estadual, na área de saúde. O interesse central do
seu trabalho, sobre o qual ele publicou livros e fez conferências
dentro e fora do Brasil, era a prevenção, o atendimento integral à
criança, diz o pediatra Barros:
- Ele criou os postos de puericultura, para orientar e atender também à criança sadia, vacinando, pesando, prevenindo problemas.
Em torno de Milton Santos, a geografia baiana
crescia: trabalhos de campo, estudos, visitas de pesquisadores famosos,
congressos, encaminhou vários de seus alunos para estudos no exterior.
Ele foi nomeado também presidente da Comissão de Planejamento Econômico
do Estado (CPE) até março de 1964, quando veio o golpe militar, conta a
professora. Então, o pior aconteceu:
-
Ele foi preso. Ficou no 19º BC por três meses. Íamos lá todos os dias. Foi terrível.
Quando foi libertado, Milton deixou o Brasil, para onde só retornou em 1978.
Martagão também saiu da Bahia, mas por um motivo
menos trágico. Getúlio Vargas o convidou para dirigir um órgão de âmbito
nacional e o pediatra viajou para o Rio. A acolhida não foi das
melhores:
-
Quando ele entrou para dar a aula inaugural na universidade, foi estrepitosamente vaiado, por causa da forma autoritária como Getúlio fazia as coisas. Martagão não se abalou e deu a aula. Quando terminou, foi ovacionado – conta Barros.
Daí até o final da vida, atuou sempre num âmbito
nacional, idealizando campanhas, produzindo monografias, falando em
congressos e estruturando o atendimento à saúde da criança no país. Uma
marca da sua passagem pela Bahia existe até hoje: o Hospital Martagão
Gesteira.
Quando Milton Santos saiu da Bahia, várias
universidades estrangeiras o convidaram e ele trabalhou em dezenas
delas. Também escreveu muitos livros e ganhou prêmios, como o Vautrin
Lud, o “Nobel” da geografia. Na Bahia, entretanto, Auxiliadora
continuava solicitando aos reitores a reintegração de Santos como
professor da Ufba, mas, misteriosamente, nunca foi atendida. A
Universidade de São Paulo (USP) o convidou então e, em 1984, Milton
voltou para o Brasil. Somente em 1995, o reitor Felippe Serpa fez
justiça e o reintegrou aos quadros da Ufba. Mas já era tarde: um ano
depois ele completou 70 anos e a aposentadoria era compulsória. Em 2001,
durante os festejos juninos, Milton faleceu. Como consolo por todos
esses anos em que fomos privados da companhia do nosso maior geógrafo,
ficou a sua obra: mais de 40 livros publicados e 300 artigos em revistas
científicas em português, francês, inglês e espanhol.
O primeiro texto escrito por um negro no Brasil que
se tem notícia foi a carta de Henrique Dias para o rei de Portugal, em
1650, conta o poeta José Carlos Limeira. Na carta, Henrique reclama do
pouco respeito com que é tratado por um general, o que considera
indevido, pois dedicou anos de sua vida ao país, como soldado, e até
perdeu uma mão em batalha. De lá para cá, muitos outros negros e mulatos
aprenderam a escrever, galgaram postos e conquistaram o respeito com o
qual Henrique sonhava. Uma geração abriu as portas para a outra,
mostrando os caminhos possíveis e que valia a pena tentar.
Essa foi a herança que nos deixaram mulheres como a
oftalmologista Cleonice Alakija – talvez a primeira nessa especialidade
na Bahia, que atendeu seus clientes no consultório do Relógio de São
Pedro até a idade de 90 anos – e a obstetra Esmeralda Vasconcelos, dona
de vastíssima clientela.
-
Num tempo em que mulher não ia em ginecologista homem de forma alguma – conta Cid Teixeira.
E que também herdamos de homens como Édison Carneiro,
advogado, jornalista, escritor, professor, antropólogo, que representou
o Brasil em muitos países pelo seu profundo conhecimento da cultura
afro-brasileira.
Uma herança deixada também por pessoas como George Alakija.
-
Psiquiatra, maior expert em hipnose da Bahia, uma das primeiras pessoas a se especializar no exame do líquido cefalorraquidiano. E, além disso, um verdadeiro príncipe, educadíssimo, uma pessoa culta, que sempre tem uma história para contar, fala de uma maneira meio oriental, por parábolas – define o psiquiatra Gabriel Nery.
Herança viva também em pessoas como o
engenheiro e poeta José Carlos Limeira, traduzido em várias línguas,
premiado, integrante de um movimento literário que ficou conhecido pelos
“Cadernos Negros”, publicados em São Paulo, na década de 70. Antonio,
Cosme, Manoel, Teodoro, André, Salustiano, Juliano, Milton, Martagão e
tantos outros são cidadãos cujos nomes a maioria de nós desconhece ou
apenas ouviu falar. Mas precisam ser nossas fontes de inspiração
cotidianas, pela preciosa lição que nos deixaram, sintetizada nesse
pensamento de Mahatma Gandhi: para progredir, não devemos repetir a
história, mas fazer uma história nova.
1Pessoa que advoga mesmo não sendo formada em Direito.
As imagens foram reproduzidas do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do livro “André Rebouças – Reforma e utopia no contexto do segundo império”.
As imagens foram reproduzidas do acervo do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia e do livro “André Rebouças – Reforma e utopia no contexto do segundo império”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário