O sobrevivente
Quem o vê no seu passeio matinal pelas
praias tranqüilas de Porto do Santo, na Ilha de Itaparica, pensa que
pode adivinhar tudo sobre Crispim Joselito da Silva. “Um pacato pai de
família aposentado”, diria qualquer um. O corpo esguio e ereto esconde a
idade, 66, mas a simpatia, bom humor e fala mansa denunciam logo: um
nativo da ilha, criado na beira do mar. Até aí, tudo bem, mas basta
parar para uma rápida conversa e pronto, Crispim já desnorteia o
interlocutor, pois, com a maior naturalidade, ele começa a falar sobre o
tempo em que viveu como escravo e como sobreviveu para contar essa
história.
O que salvou Crispim de uma enrascada tão
grande é que ele sempre foi tão tranqüilo por fora, quanto inquieto por
dentro. Nascido no pequeno povoado que já foi famoso pela pesca da
baleia, resolveu logo que não queria ser pescador. Já rapazote, arranjou
uma ocupação singular: “Eu levava os romeiros, os aleijados e cegos até
os milagres. Ia lá todos os dias”, conta ele, referindo-se ao pequeno
riacho de Porto do Santo onde vivia o eremita Venceslau Monteiro, que
era procurado por caravanas de romeiros na década de 50. Além disso,
Crispim exercitava-se como pedreiro.
Em 1961, com 25 anos de idade, Crispim
resolveu dar um novo rumo à sua vida e aceitou o convite de um camarada
“para ir trabalhar em Itabuna, no canal da Rua Cinqüentenária”. Foi a
primeira vez em que ele saiu da ilha: “Saí daqui às 4h. Cheguei em
Salvador, dormi um pouco num açougue, até que deu a hora, subi o
elevador e fui pra Praça Castro Alves pegar o ônibus. Cheguei em Itabuna
às 21h e fiquei esperando meu amigo. Meia-noite ele chegou e disseram
que o serviço lá estava parado”. Depois de aguardar alguns dias e ver
todo o seu dinheiro ir embora, Crispim decidiu pedir ajuda na prefeitura
para voltar a Salvador. Foi aí que tudo aconteceu.
“No caminho encontrei com um caminhão que
estava levando gente pra trabalhar em Goiás. Eu disse que era pedreiro e
que não tinha um centavo. Eles disseram que tudo bem, que me davam um
dinheiro pra refeição. Me despedi dos meninos e fui. Saímos às 16h, com
36 pessoas e viajamos sete dias. No caminho foram pegando mais gente:
quando chegamos em Intubiária, eram 86 homens e uma mulher”, conta ele.
Assim que chegaram, apareceu o fazendeiro Sebastião de Melo, dizendo que
queria levar 25 “baianos”: “Fui o primeiro a ser escolhido”, conta
Crispim, que também não esquece o valor do negócio: “Ele pechinchou e
pagou 3.700 réis por cada um de nós”.
Na fazenda Guairim, onde viveu de 1961 a
1964, Crispim viu logo que não ia ser fácil: “A gente morava num barraco
coberto de capim. Não tinha cama, eles só nos deram uns sacos pra
encher de palha de milho e usar como colchão”. Acordavam bem cedo,
tomavam café preto, trabalhavam por várias horas – na roça, fazendo
tijolo ou pó de mico – até que vinha o almoço: arroz. “Uma vez por outra
botavam um ovo”, conta ele. À noite, vinha a janta: arroz. Dinheiro,
ninguém recebia. Se quisessem uma roupa ou fumo de rolo, o encarregado
da fazenda, Pedro Cardoso, é que providenciava, pois ninguém podia sair.
Quem se metia a valente, passava a trabalhar com uma corrente amarrada
no pé. Se tentassem fugir, eram derrubados pelo tiro certeiro de um dos
jagunços: “Vi até gente ser enterrado vivo”, conta ele.
“Dos 25, só sobraram quatro: eu, Zé
Roberto, João e Mário. A gente andava junto o tempo todo, desde o
começo. Um dia, disse que queria ir embora. Seu Sebastião veio, fez
minhas contas e me deu um dinheirinho. Mas eu não saí logo. Sabia que na
hora que eu tentasse sair, eles me pegavam. Aí, no quarto dia, fui na
venda, comprei pinga, mortadela, fogos e disse que era meu aniversário.
Fui pro meio dos jagunços com a pinga e fiquei lá. Quando era bem tarde,
todo mundo dormindo, fui chamar os meninos e nos metemos pelo meio do
mato, que tinha muita onça, mas não tinha jeito, porque todas as
cancelas tinham sebo no pé, pra gritar quando alguém passava”, conta
Crispim.
Depois de atravessarem a mata guiando-se
pelo Cruzeiro do Sul, o grupo chegou até a estrada e conseguiu carona
para a cidade mais próxima: Centralina. “Na estação, tinha um homem só
olhando pra gente, achei que era policial, que ia nos prender. Aí ele
veio, perguntou quem a gente era e nós contamos tudo. Ele conhecia
Sebastião, disse que a gente tinha muita sorte e nos chamou pra
trabalhar com ele”, conta Crispim. Como sequer tinham dinheiro
suficiente para voltar à Bahia, eles aceitaram a nova aventura: “Mas
dessa vez deu certo. Geraldo Costa nos pagava, deu um pedaço de terra
pra gente plantar. Eu ia sempre com ele nas viagens pra São Paulo e
Brasília”. Entretanto, Crispim percebeu que estava abusando da sorte
quando os seus amigos começaram a desaparecer: “Um sumiu num pagode, os
outros caíram mortos numa estrada, dizem que foi por causa de briga.
Mário era de menor. Aí, resolvi vir embora”.
Em 1965, finalmente, ele estava de volta à
Bahia. Sem dinheiro na mão, ainda teve trabalho para conseguir chegar
até a Itaparica. Depois, aos poucos, tudo foi se ajeitando: “Consegui
emprego na Odebrecht: encarregado de serviços gerais. Uma boa empresa:
viajei pra Angola, São Paulo, Pará, Paraná, Rio de Janeiro. Foram 28
anos. Me casei e tive uma filha”, conta ele, que, sem um pingo de
amargura resume sua filosofia: “A vida é que nem um jogo que eles tinha
lá, o truque: tudo tem um jeito e hora certa de fazer, é só esperar”.
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