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segunda-feira, 4 de março de 2013

O sobrevivente

O sobrevivente

Foto de Edmar Melo: Crispim Joselito da Silva
Quem o vê no seu passeio matinal pelas praias tranqüilas de Porto do Santo, na Ilha de Itaparica, pensa que pode adivinhar tudo sobre Crispim Joselito da Silva. “Um pacato pai de família aposentado”, diria qualquer um. O corpo esguio e ereto esconde a idade, 66, mas a simpatia, bom humor e fala mansa denunciam logo: um nativo da ilha, criado na beira do mar. Até aí, tudo bem, mas basta parar para uma rápida conversa e pronto, Crispim já desnorteia o interlocutor, pois, com a maior naturalidade, ele começa a falar sobre o tempo em que viveu como escravo e como sobreviveu para contar essa história.
O que salvou Crispim de uma enrascada tão grande é que ele sempre foi tão tranqüilo por fora, quanto inquieto por dentro. Nascido no pequeno povoado que já foi famoso pela pesca da baleia, resolveu logo que não queria ser pescador. Já rapazote, arranjou uma ocupação singular: “Eu levava os romeiros, os aleijados e cegos até os milagres. Ia lá todos os dias”, conta ele, referindo-se ao pequeno riacho de Porto do Santo onde vivia o eremita Venceslau Monteiro, que era procurado por caravanas de romeiros na década de 50. Além disso, Crispim exercitava-se como pedreiro.
Em 1961, com 25 anos de idade, Crispim resolveu dar um novo rumo à sua vida e aceitou o convite de um camarada “para ir trabalhar em Itabuna, no canal da Rua Cinqüentenária”. Foi a primeira vez em que ele saiu da ilha: “Saí daqui às 4h. Cheguei em Salvador, dormi um pouco num açougue, até que deu a hora, subi o elevador e fui pra Praça Castro Alves pegar o ônibus. Cheguei em Itabuna às 21h e fiquei esperando meu amigo. Meia-noite ele chegou e disseram que o serviço lá estava parado”. Depois de aguardar alguns dias e ver todo o seu dinheiro ir embora, Crispim decidiu pedir ajuda na prefeitura para voltar a Salvador. Foi aí que tudo aconteceu.
“No caminho encontrei com um caminhão que estava levando gente pra trabalhar em Goiás. Eu disse que era pedreiro e que não tinha um centavo. Eles disseram que tudo bem, que me davam um dinheiro pra refeição. Me despedi dos meninos e fui. Saímos às 16h, com 36 pessoas e viajamos sete dias. No caminho foram pegando mais gente: quando chegamos em Intubiária, eram 86 homens e uma mulher”, conta ele. Assim que chegaram, apareceu o fazendeiro Sebastião de Melo, dizendo que queria levar 25 “baianos”: “Fui o primeiro a ser escolhido”, conta Crispim, que também não esquece o valor do negócio: “Ele pechinchou e pagou 3.700 réis por cada um de nós”.
Na fazenda Guairim, onde viveu de 1961 a 1964, Crispim viu logo que não ia ser fácil: “A gente morava num barraco coberto de capim. Não tinha cama, eles só nos deram uns sacos pra encher de palha de milho e usar como colchão”. Acordavam bem cedo, tomavam café preto, trabalhavam por várias horas – na roça, fazendo tijolo ou pó de mico – até que vinha o almoço: arroz. “Uma vez por outra botavam um ovo”, conta ele. À noite, vinha a janta: arroz. Dinheiro, ninguém recebia. Se quisessem uma roupa ou fumo de rolo, o encarregado da fazenda, Pedro Cardoso, é que providenciava, pois ninguém podia sair. Quem se metia a valente, passava a trabalhar com uma corrente amarrada no pé. Se tentassem fugir, eram derrubados pelo tiro certeiro de um dos jagunços: “Vi até gente ser enterrado vivo”, conta ele.
“Dos 25, só sobraram quatro: eu, Zé Roberto, João e Mário. A gente andava junto o tempo todo, desde o começo. Um dia, disse que queria ir embora. Seu Sebastião veio, fez minhas contas e me deu um dinheirinho. Mas eu não saí logo. Sabia que na hora que eu tentasse sair, eles me pegavam. Aí, no quarto dia, fui na venda, comprei pinga, mortadela, fogos e disse que era meu aniversário. Fui pro meio dos jagunços com a pinga e fiquei lá. Quando era bem tarde, todo mundo dormindo, fui chamar os meninos e nos metemos pelo meio do mato, que tinha muita onça, mas não tinha jeito, porque todas as cancelas tinham sebo no pé, pra gritar quando alguém passava”, conta Crispim.
Depois de atravessarem a mata guiando-se pelo Cruzeiro do Sul, o grupo chegou até a estrada e conseguiu carona para a cidade mais próxima: Centralina. “Na estação, tinha um homem só olhando pra gente, achei que era policial, que ia nos prender. Aí ele veio, perguntou quem a gente era e nós contamos tudo. Ele conhecia Sebastião, disse que a gente tinha muita sorte e nos chamou pra trabalhar com ele”, conta Crispim. Como sequer tinham dinheiro suficiente para voltar à Bahia, eles aceitaram a nova aventura: “Mas dessa vez deu certo. Geraldo Costa nos pagava, deu um pedaço de terra pra gente plantar. Eu ia sempre com ele nas viagens pra São Paulo e Brasília”. Entretanto, Crispim percebeu que estava abusando da sorte quando os seus amigos começaram a desaparecer: “Um sumiu num pagode, os outros caíram mortos numa estrada, dizem que foi por causa de briga. Mário era de menor. Aí, resolvi vir embora”.
Em 1965, finalmente, ele estava de volta à Bahia. Sem dinheiro na mão, ainda teve trabalho para conseguir chegar até a Itaparica. Depois, aos poucos, tudo foi se ajeitando: “Consegui emprego na Odebrecht: encarregado de serviços gerais. Uma boa empresa: viajei pra Angola, São Paulo, Pará, Paraná, Rio de Janeiro. Foram 28 anos. Me casei e tive uma filha”, conta ele, que, sem um pingo de amargura resume sua filosofia: “A vida é que nem um jogo que eles tinha lá, o truque: tudo tem um jeito e hora certa de fazer, é só esperar”.

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