Mães-de-santo
Mesmo antes de chegar ao Brasil como escravas, elas
já conheciam a violência da guerra entre povos africanos vizinhos, que
vendiam aos traficantes os prisioneiros vencidos. Mas elas nunca
conheceram o medo. Na África, as mulheres iorubás participavam do
conselho dos ministros, tinham organizações próprias e chegaram a
liderar um intenso comércio que incluía rotas internacionais. Foi por
isso que, na Bahia do início do século XIX, elas conseguiram o que
parecia impossível: deram à luz uma organização religiosa que conciliava
tradições de diferentes povos, resistindo à exploração da escravidão e à
perseguição policial. No candomblé, com diplomacia, inteligência e fé,
elas reuniram todos os elementos necessários para garantir ânimo e
auto-estima ao seu povo. O título que receberam expressa bem o misto de
liderança religiosa, chefia política e poder terapêutico que exercem:
mães-de-santo.
Contam os antropólogos, como Ordep Serra, que é
professor da Universidade Federal da Bahia (UFBa) e ogã suspenso do
terreiro da Casa Branca, que não há registros da existência efetiva do
matriarcado em nenhuma sociedade. Ainda que tudo não passe de uma lenda
criada por sonhadores, experiências como a do candomblé baiano deixam
entrever como seria o mundo governado por mulheres. A liderança feminina
nessa tradição religiosa, explica Maria Stella de Azevedo, a Mãe Stella
de Oxóssi do Ilê Axé Opô Afonjá, vem de um fato simples. As pioneiras
do candomblé, princesas africanas que vieram para a Bahia em fins do
século XVIII, criaram o princípio de que as suas casas religiosas só
poderiam ser lideradas por mulheres. Uma tradição mantida até hoje nos
terreiros mais antigos, como a Casa Branca, o Alaketu, o Gantois, o
Afonjá e o Cobre.
Inteligência, energia, generosidade, iniciativa,
conhecimento litúrgico. Cada um dá a sua lista de qualidades
indispensáveis para que uma mulher se torne uma mãe-de-santo ou
ialorixá. O certo é que a tarefa é repleta de responsabilidades e
sacrifícios, mas, se desempenhada com competência, traz a possibilidade
de mudar a realidade das pessoas em volta. Não é à toa, então, que
tantas mães e pais-de-santo, como Mãe Senhora, Mãe Aninha e Mãe
Menininha do Gantois gozam de grande prestígio, sendo recebidos e
visitados por políticos, artistas e intelectuais de todo o mundo. A
escravidão, a pobreza, a perseguição, as surras e as prisões não foram
suficientes para diminuir a altivez, o espírito empreendedor e a
sabedoria dessas pessoas.
Segundo Mãe Stella, todo terreiro é, em princípio,
uma família, porque é uma família espiritual. Como elo maior que une a
todos, a busca de contato com os elementos que nutrem a vida de todos os
seres vivos: a força dos ventos, do fogo, das matas, da terra, das
pedras, das águas.
-
Os orixás são simbolizados pelas forças naturais, que são coisas que não têm sexo. O vento tem sexo? Qual é o sexo do vento, apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã? O espiritual não tem sexo, não tem raça, nada disso – define Mãe Stella.
Mas outros aspectos da vida também são contemplados
na comunidade religiosa: apoio financeiro, moradia, criação de escolas,
bibliotecas, museus, grupos de estudo, cursos profissionalizantes,
assistência à saúde física e mental. Assim, aqueles que exercitam os
seus direitos e deveres para com a comunidade podem se considerar
membros de uma família e, de fato, filhos e irmãos-de-santo.
ACORDO DIPLOMÁTICO
Ketus, angolas, jejes, haussás, tapás, oyós, ijexás,
baribas, aon efans, gruncis. Para quem chegava a Salvador no final do
século XVIII e início do XIX, a impressão era uma só: uma cidade negra.
Porque negros eram os homens e mulheres que se via pelas ruas, subindo e
descendo as ladeiras, transportando mercadorias, vendendo alimentos,
carregando água, pescando, cozinhando, erguendo paredes, fazendo a
cidade funcionar. Mas faltava uma coisa essencial a essa multidão:
união. Para entender a história do candomblé e dessas grandes mulheres é
fundamental relembrar alguns episódios da história da África. Quem sabe
contar bem o que aconteceu nessa época é o antropólogo e professor da
Ufba Renato da Silveira, que estuda o tema da fundação do candomblé da
Bahia há mais de 20 anos, desde quando defendeu uma tese de doutorado
sobre o assunto, e é autor do livro O candomblé da Barroquinha.
Os primeiros povos a virem para cá em
grande quantidade foram os do grupo cultural banto, principalmente os
angolas, que criaram os calundus, uma espécie de candomblé simplificado
com duas ou três divindades. Aconteceu aí uma mistura grande com os
índios, de quem herdaram o conhecimento sobre ervas, originando os
candomblés de caboclo. Também vieram muitos outros povos, sendo que os
jejes – ou ewés, de língua fon, do antigo Daomé – eram maioria em
Salvador em meados do século XVIII. Angolas e jejes se davam bem e
criaram uma espécie de cultura de rua afro-baiana com contribuições de
ambas as partes. Uma característica importante das expressões religiosas
desses precursores, principalmente dos calundus, era a assistência
médica que prestavam à população, acrescenta Silveira.
No final do século XVIII, os povos nagôs-iorubás, do
grupo lingüístico sudanês, começam a chegar em massa na Bahia. O povo
que iria criar aqui a religião que conhecemos hoje como candomblé,
incluindo heranças jejes, angolas, mas principalmente o legado dos
reinos que compunham o que se chama de Império de Oyó ou país iorubá: os
ijexá, que cultuavam o rio Oxum; os ketu, terra de Oxóssi; os aon efan –
dos orixás do branco, como Oxalá; os oyós – de Xangô e Iansã e
representantes de outros reinos. Segundo Renato da Silveira, o Império
de Oyó, que começou a nascer antes do ano mil e teve como primeira
cidade Ifé, deve ter chegado a ter oito milhões de habitantes. As suas
maiores cidades, entre sete e 10, tinham cerca de 40 a 50 mil
habitantes, “o mesmo que cidades européias desse período”, compara.
Mas o grande império, que tinha conquistado e subjugado vários povos, um dia começou a ruir. Era a guerra civil.
-
Até 1820 e 1830 eram os iorubás que vendiam escravos haussás, tapás, baribas: os povos do norte. Depois, a situação se inverte e os comerciantes muçulmanos é que começam a vender os iorubás. Os senhores de Ibadan e Abeokutá, comprometidos com o tráfico, começam a atacar os vizinhos e os daomeanos também se aproveitam. Com a desagregação do Império de Oyó, criam-se bandos armados que atacam indiscriminadamente e começam a vender escravos – conta o antropólogo.
Começam a chegar à Bahia, então, cidadãos iorubás de
todos os tipos, inclusive membros de famílias reais, sacerdotes e
sacerdotisas. Entre 1830 e 1835 acontece a queda definitiva da capital:
Oyó é invadida e saqueada pelos muçulmanos do norte. No mesmo período,
na Bahia, tendo à frente uma Iyá Nassô – sacerdotisa de Xangô na corte
de Oyó – funda-se o candomblé da Barroquinha. Do outro lado do
Atlântico, renasce a tradição.
A pantanosa Barroquinha era um bairro de negros. Lá estava a Igreja de Nossa Senhora da Barroquinha1,
que desempenhou um papel estratégico, de apoio e disfarce para a
fundação do candomblé. Desde 1764, havia se instalado ali uma associação
de escravos libertos, a Irmandade de Bom Jesus dos Martírios, que anos
mais tarde iria arrendar o terreno nos fundos, onde funcionou o
candomblé. Os dados sobre esse período não são exatos, os pesquisadores
precisam cruzar tradições orais mantidas nos terreiros com documentos de
polícia e relatos da época. Como diz o professor Ordep Serra, as
variações sobre a história do candomblé são normais, “como as várias
versões do Evangelho”. Seguiremos aqui a proposta cronológica de Renato
da Silveira.
Primeiro, por volta de 1790, teria sido fundado por
membros da família Arô – uma das cinco famílias reais do reino de Ketu –
o culto a Odé (Oxóssi). Datam dessa época os ataques a Ketu e a chegada
na Bahia das princesas gêmeas da família Arô, capturadas e vendidas por
daomeanos com apenas 9 anos de idade. O culto funcionava numa
residência na Rua da Lama, atrás da Igreja da Barroquinha, onde hoje
fica a Rua Visconde de Itaparica, tendo à frente a africana Iyá Adetá.
Depois dela veio a africana Iyá Akalá, introduzindo o culto a Airá – um
tipo de Xangô que se veste todo de branco (alá significa pano branco,
lembra Silveira). Possivelmente nessa época se deu a saída dos Arô, que
foram para Luis Anselmo e fundaram lá o candomblé do Alaketu, conduzido
por décadas pela ialorixá Olga do Alaketu, falecida em 2005. Os
resquícios desses primeiros tempos ainda estão vivos: no Terreiro da
Casa Branca, a festa de Xangô é chamada pelos filhos-de-santo de “Festa
de Airá” e, também nesse terreiro e herdeiros de sua tradição, a
saudação a Oxóssi ainda relembra os pioneiros: “Okê Odé, okê Arô”, conta
o pesquisador.
A terceira grande sacerdotisa do candomblé da
Barroquinha foi uma Iyá Nassô. Pessoas dos terreiros, antropólogos e
historiadores acreditam que ela não veio para a Bahia como escrava, mas
sim, intencionalmente, para reestruturar o culto a Xangô e tentar
reorganizar o seu povo nesse momento de desagregação total dos iorubás.
Ela estava acompanhada de outras pessoas do alto escalão de Oyó. Eram
alguns Essas, um título no conselho de ministro do reino de
Ketu, Babá Axipá e Rodolpho Martins de Andrade, também conhecido como
Bamboxê Obitikô, entre outros. Há quem diga que a mãe de Iyá Nassô já
tinha sido escrava na Bahia, conseguiu a alforria e retornou para a
África e que, como muitas outras mães-de-santo baianas, Iyá Nassô era
comerciante e morava no Centro Histórico de Salvador.
Em meados do século XIX, a prosperidade do candomblé e
da Irmandade de Bom Jesus dos Martírios foi interrompida por mudanças
externas. Quando Francisco Gonçalves Martins assume como presidente da
província, “de 1848 a 1852, um governador de extrema direita,
antiafricano feroz”, segundo Silveira, inicia-se a urbanização da
Barroquinha e o terreiro é expulso de lá. Na época da saída da
Barroquinha e da sucessão de Iyá Nassô, houve instabilidade, várias
mudanças de endereço, mas o Ilê Axé Iyá Nassô Oká conseguiu encontrar o
local adequado para plantar os seus axés e fundar uma nova sede. O lugar
escolhido foi o antigo Caminho do Rio Vermelho de Baixo, atual Avenida
Vasco da Gama, onde até hoje funciona o Terreiro da Casa Branca. Um
documento que já comprova a localização neste novo endereço,
infelizmente, é um registro de polícia, dando conta da prisão de várias
pessoas num candomblé no Engenho Velho, em 1855. Quem sucedeu Iyá Nassô
foi Marcelina Obatossi, que faleceu em 1885, sendo substituída por Maria
Júlia Figueiredo. Em que período exatamente começam a ser fundadas
outras casas, por dissidências da primeira, e se foi Iyá Nassô ou
Obatossi quem realizou a mudança de endereço, é difícil precisar com
exatidão, mas certamente foi ainda no século XIX que tudo aconteceu.
A essa altura, entretanto, ninguém mais podia deter
essas mulheres. Elas já tinham feito o principal: criado uma religião
que era um poderoso acordo diplomático entre povos distintos. Na roda
dos orixás (xirê) da Barroquinha, dançam juntos a Oxum e o Logunedé dos
ijexá, o Xangô e a Iansã dos oyós, o Oxóssi dos ketus, o Oxalá, Oxalufã e
Oxaguiã dos aon efan. Nas indumentárias e vocabulários, aparecem
heranças jejes e angolas. Mas, ao contrário do que temia o Conde dos
Arcos, quando os africanos esqueceram os velhos ódios étnicos que os
separaram no passado, não se abateu um grande perigo sobre a Bahia. Na
verdade, começou aí uma luta longa e pacífica pela tolerância religiosa,
pelo convívio harmônico, que levou uma mãe-de-santo baiana a conversar
com o presidente da República, pedindo respeito às crenças do seu povo. A
liberdade de culto chegou definitivamente à Bahia muito tempo depois,
através de um decreto governamental assinado em janeiro de 1976. Somente
a partir daí, os terreiros não precisaram mais do registro, pagamento
de taxa e licença da polícia para exercer suas atividades.
MATRIARCADO
Em todas as famílias, quando os filhos crescem e já
são fortes o bastante, é natural que saiam de casa e trilhem seu próprio
caminho. No candomblé não é diferente. Foi o que aconteceu com Maria
Júlia da Conceição Nazaré, quando ela sentiu que podia criar a sua
própria casa religiosa, fundada num terreno dentro da propriedade do
belga Édouard Gantois. Alguns acreditam que essa saída se deu na época
da sucessão de Iyá Nassô, mas as tradições orais apontam mais para o
afastamento no período da sucessão de Obatossi, quando foi escolhida
Maria Júlia Figueiredo para ser a nova mãe-de-santo da Casa Branca.
Começa aí a frutífera e numerosa descendência desse terreiro.
-
De um modo ou de outro todos os candomblés saíram da Casa Branca – afirma o antropólogo Ordep Serra.
Como “grande mãe” dos candomblés baianos, essa casa
religiosa cultiva com muito rigor suas tradições, mantendo, por exemplo,
o princípio de não iniciar filhos-de-santo do sexo masculino até hoje.
Depois de Marcelina Obatossi e Maria Júlia Figueiredo, estiveram à
frente da casa Ursulina Maria de Figueiredo (Mãe Sussu), Maximiana Maria
da Conceição (Tia Massi), Deolinda dos Santos (Oké), Marieta e agora a
sua filha, Altamira Cecília dos Santos (Mãe Tatá).
Na sua época, Maria Júlia Figueiredo chegou a ser uma
mulher de grande influência, principalmente entre a população negra da
cidade. Esse poder fica nítido pelos títulos que ela possuía, resgatando
organizações africanas nas quais as mulheres exerciam papéis
importantes. Maria Júlia era uma Erulu, cargo máximo das
mulheres na Sociedade Ogboni, que, segundo Renato da Silveira,
funcionava como um poder moderador da sociedade civil iorubá. Maria
Júlia era também uma iyalodé, o cargo máximo de uma mulher numa
importante associação feminina que existiu nos reinos de Ibadan e
Abeokutá. Mas isso não é tudo. Ela também era a provedora-mor da Devoção
da Nossa Senhora da Boa Morte, fundada na Irmandade dos Martírios, e a
ialaxé da Gueledé, um culto feminino às grandes mães do qual ainda se
encontram resquícios nos terreiros mais antigos.
Conseguir falar com uma ialorixá da Casa Branca é uma
tarefa árdua. Discretas ou desconfiadas? Não é possível saber, mas,
certamente, como pioneiros que foram, os membros dessa casa conheceram
muitos períodos difíceis e enfrentaram perseguições, o que pode explicar
a opção pelo silêncio. Quem olha para o terreiro hoje em dia, num lugar
acessível, terá dificuldades para entender o que essas mulheres
enfrentaram para manter a sua roça. Por volta de 1938, quando esteve no
Brasil, a antropóloga Ruth Landes foi levada até lá pelo etnógrafo
Edison Carneiro, para uma festa de Oxalá. Em seu livro A Cidade das Mulheres ela narra o que viu:
- O lugar ainda parecia uma mata e, quando o bonde parou ao pé do alto morro onde ficava o templo, pude apenas ver árvores imensas que se elevavam contra o céu claro.
Uma das histórias mais impressionantes sobre a
violência contra os candomblés baianos é a da mãe-de-santo Nicácia,
presa pelo Conde da Ponte, apesar de prestígio que possuía, de já ser
uma senhora e da deficiência física na perna. No trajeto do Cabula até a
prisão, onde hoje é a Câmara Municipal, ela foi acompanhada por uma
multidão. Nessa época, ter prestígio entre alguns brancos podia ser
motivo suficiente para a perseguição.
Mãe Tatá, atual ialorixá da Casa Branca, é uma das
mães-de-santo baianas mais reservadas. O professor Ordep Serra a define
assim:
-
Ela é muito discreta, fala pouquíssimo e é de uma sutileza e inteligência incomuns. Você pode entrar e sair de uma festa sem perceber que ela é a mãe-de-santo. Ela é simples e tranqüila.
A segunda mulher mais importante num terreiro é a mãe
pequena e muitas delas se tornaram depois mães-de-santo. Em seu livro,
Ruth Landes deixou um retrato vívido de uma das mães pequenas da Casa
Branca, Mãe Luzia: uma mulher enorme, vigorosa e confiante, que
conseguiu estabilidade financeira vendendo carnes no mercado, além de
adornos e objetos do culto. Quando Landes a conheceu, Luzia tinha
recentemente se tornado viúva, depois de um período longo de vida a
dois. Filhos, ela só teve os de santo, o que já significava muito
trabalho, como lhe contou Edison Carneiro:
- Juntamente com a mãe, ela toma todas as decisões de importância para o templo. Além disso, ouve as lamúrias de inúmeros clientes e resolve os seus casos. Eles lhe pagam pelo serviço, mas ela destina boa parte do dinheiro para a manutenção do templo.
Pessoas de todas as casas sempre se referem com muito
respeito à Casa Branca, inclusive porque foi ali que muitos se
iniciaram. Em 1984, veio o reconhecimento – tardio, mas importante – com
o tombamento da Casa Branca, primeiro templo religioso não católico a
ser receber o título de Patrimônio Histórico do Brasil, pelo IPHAN. No
dia da inauguração da Praça de Oxum, representantes de outros terreiros
fizeram questão de comparecer e prestar as suas homenagens ao Ilê Axé
Iyá Nassô Oká, também conhecido como Sociedade Beneficente e Recreativa
São Jorge.
MÃE MENININHA
O terreiro do Gantois dispensa apresentações. Ele
está entre as “grandes casas, as casas importantíssimas”, como diz o
ensaísta Waldeloir Rego, que se define como um estudioso de assuntos
antropológicos. Ele acrescenta ainda:
-
Essas casas não são grandes e importantes porque são do tamanho de um supermercado, mas porque tiveram uma linhagem importante de descendentes.
Desde as pioneiras, Maria Júlia da Conceição Nazareth
e depois sua filha, Pulchéria da Conceição Nazareth, o Gantois sempre
desfrutou de muito prestígio. Duas marcas dessa casa, especialmente
desenvolvidas por Maria Escolástica da Conceição Nazareth – a sobrinha
que substituiu Pulchéria e era mais conhecida como Mãe Menininha -, são a
diplomacia e beleza dos seus rituais. Além, é claro, da seriedade e
conhecimento litúrgico, o que sempre lhe garantiu uma multidão de
filhos-de-santo, parceiros e admiradores.
A família de Maria Júlia da Conceição Nazaré, ou
Omoniquê, veio de Abeokutá. O seu pai, Okarindé, era uma espécie de
secretário do rei. Quando ela saiu do Ilê Iyá Nassô Oká e decidiu fundar
a sua própria casa, manteve a regra de que só mulheres ocupariam cargos
de chefia e acrescentou o critério do parentesco na sucessão. Sobre
Pulchéria, filha de Oxóssi, conta-se que teve um desempenho tão
marcante, que corruptelas de Gantois – canzuá e ganzuá – se tornaram
sinônimo de candomblé. No tempo de Pulchéria, um dos freqüentadores era o
médico Nina Rodrigues, pioneiro nos estudos sobre a cultura negra no
Brasil. Mãe Menininha também conquistou muito respeito, tanto entre o
povo, quanto entre figuras ilustres. Era procurada e admirada por
pessoas como os médicos João Mendonça e Hosannah de Oliveira,
intelectuais e artistas famosos, como Dorival Caymmi, Jorge Amado,
Caetano Veloso e Maria Bethânia, além de políticos.
Mãe Menininha ainda não tinha um ano de idade quando
foi iniciada e também assumiu cedo a chefia da casa, com apenas 28 anos.
Quem a conheceu, garante que conhecimento, bondade, feminilidade e
rigor reuniam-se nessa mulher com o mesmo equilíbrio. Ela gostava de
definir o Gantois como uma casa de caridade e, de fato, a busca de
auxílio e orientação sempre foram motivos que levaram muitas pessoas até
lá. Mas outros atributos também contribuíram para a fama do Gantois e
de Mãe Menininha.
-
Ela sempre foi amiga de todo mundo. Educadíssima, tratava todo mundo bem. Parecia até que tinha passado por uma escola pra aprender isso, mas ela nasceu assim. Era uma pessoa diplomática. Por exemplo, se ela estava fazendo o jogo pra você e saía alguma coisa que você não ia gostar de ouvir, ela se via doida. Fazia uma volta danada, pra dizer só mais ou menos, só sugerir a coisa que você não ia gostar – conta Waldeloir Rego, também conhecido como “pai dos colares”, pelas jóias e colares de iniciação que já fez.
Ruth Landes também teve a oportunidade de
conviver com Menininha e deixou registrado uma outra nuance da sua
personalidade: seu talento artístico. Num trecho do seu livro, registrou
o comportamento da famosa mãe-de-santo durante um ritual:
- Apesar da sua dor de cabeça, Menininha cantava e dançava sem parar, mexendo no xale que devia esconder-lhe os seios. Movia-se com leveza e rapidez, e por vezes era graciosa e dramática. E cantava encantadoramente, sem embustes e sem ‘espalhar brasas’, como se diz. Sentia-se que adorava cantar e dançar.
Com o esposo advogado, Mãe Menininha teve duas filhas – Cleusa e Carmem – que lhe sucederam à frente do Gantois.
SUPERANDO A SI MESMO
Ninguém entra para a religião dos orixás pensando em ser mãe-de-santo, pelo menos as pessoas sensatas, explica Mãe Stella:
-
Porque aí não é algo espiritual, passa a ser uma coisa de superação. No candomblé, a gente não tem que superar o outro, tem que superar a si próprio.
E foi o que aconteceu com as líderes de duas das mais
importantes e antigas casas da Bahia: o Afonjá e o Cobre. A superação
veio por meio de um cotidiano de trabalho, esforço e dedicação contínua
ao sacerdócio. Os ritos praticados nessas casas são exigentes e, por
isso mesmo, fortalecem e educam aqueles que os praticam. No caso do
Cobre, que chegou a permanecer fechado por alguns anos, a retomada do
funcionamento da casa foi uma convocação espiritual. Quem mais lucra com
o trabalho do Afonjá e do Cobre são os adeptos e vistantes, que
encontram nesses lugares fontes de conhecimento e proteção.
Eugênia Anna dos Santos fez uma opção ousada: comprou
um terreno para a sua roça num lugar distante e ermo, o Alto do São
Gonçalo do Retiro. Para chegar lá, era preciso subir uma ladeira íngreme
que o mato praticamente dominava. Mas, em 1910, todos estavam
contentes. Depois de passar por vários endereços, o grupo estava
finalmente na sua casa definitiva: o Ilê Axé Opô Afonjá. A fundadora do
Afonjá, mais conhecida como Mãe Aninha ou Obá Biyi, sabia o que estava
fazendo. Filha de um casal de africanos grunci, ela foi iniciada pelos
nagôs da Casa Branca. Desde quando deixou o antigo terreiro, Aninha
sempre buscou congregar boas colaborações e estabelecer parcerias,
inclusive, com muitos homens, como os lendários Miguel Sant’Anna e
Martiniano Eliseu do Bonfim, que morou muitos anos na Nigéria e a
auxiliou a resgatar aqui os 12 obás de Xangô, os ministros do rei.
Também era amiga de intelectuais como Donald Pierson, Jorge Amado e
Edison Carneiro, que ela escondeu da ditadura de Vargas. O mesmo Getúlio
Vargas com quem Aninha conversou quando esteve na antiga capital
federal, Rio de Janeiro, em busca de apoio para a sua religião. Como
deputado, o seu amigo Jorge Amado conseguiu aprovar uma lei que
estabelecia a liberdade de culto no país, que só foi se tornar efetiva
na Bahia somente muitos anos depois. No governo de Roberto Santos, em
janeiro de 1976, foi assinado um novo decreto eliminando a necessidade
de registro, pagamento de taxa e licença da polícia para o funcionamento
dos terreiros.
Nessa época, em que o risco de ter a sua casa
religiosa invadida pela polícia estava sempre presente, conseguir
simpatizantes e boas amizades era uma necessidade. Os contatos com a
Igreja Católica também eram freqüentes, como explica Mãe Stella:
-
Mãe Aninha se integrou na Igreja Católica para ter status, porque quem mandava era o branco e essa era a religião do branco.
Foi na sua época também que se criou a Sociedade
Civil Cruz Santa Opô Afonjá. Até os acadêmicos se curvaram à sabedoria e
força dessa mulher, dona de uma quitanda. Em 1937, ela participou do II
Congresso Afro-Brasileiro com uma comunicação sobre alimentação
litúrgica. Com a morte de Mãe Aninha, assumiu Mãe Bada, de 1939 a 1941
e, então, chegou a vez de Mãe Senhora, a poderosa filha de Oxum e
bisneta de Marcelina Obatossi, que seguiu à frente do Afonjá de 1942 a
1967.
Vigorosa e de personalidade forte, ao lado de
Menininha do Gantois, Senhora foi uma das mães-de-santo baianas que mais
homenagens recebeu em vida e que mais longe levou a sua tradição
religiosa. Em 1965, ela foi ao Rio de Janeiro receber o título de Mãe
Preta do Ano, no Maracanã. Em Madureira, existe um busto em sua
homenagem. Com a ajuda do fotógrafo e antropólogo Pierre Verger,
restabeleceu importantes contatos com a África, mantidos por seu filho,
Mestre Didi. De lá, recebeu o título de Iya Nassô.
Como todos os antigos, Mãe Senhora brigava feio
quando as regras litúrgicas não eram respeitadas, mas logo fazia um
carinho no faltoso assustado, como conta Waldeloir Rego, iniciado por
ela em 1964. Waldeloir lembra de um episódio com Mãe Senhora que define
bem o poder que lhe era atribuído e a seriedade com que ela o exercia:
-
Quando ela estava no Rio, chegou uma senhora de família tradicional para vê-la, dizendo: “Oh, minha mãe, eu quero me ver livre do meu marido, mate ele”. Aí, ela disse pra moça: “Minha filha, eu não posso fazer isso, porque eu só vim ao mundo pra aconselhar e pra botar a mão”, que é iniciar os filhos-de-santo.
Poucos dias antes de morrer, em janeiro
de 1938, Mãe Aninha conheceu uma garotinha desconfiada que, nenhuma das
duas podia imaginar, anos mais tarde se tornaria a ialorixá do Afonjá:
Stella Azevedo. Depois de Mãe Senhora, veio Mãe Ondina, que cuidou do
axé do São Gonçalo até 1975, quando então assumiu Stella de Oxossi. Se
nesses anos todos a roça de Obá Biyi sempre prosperou, sob o comando de
Mãe Stella as coisas seguiram com uma rapidez ainda maior. A enfermeira
que estudou em boas escolas, aprendeu francês e piano, foi funcionária
pública e dona de uma loja de artesanato, transformou o Afonjá,
definitivamente, numa universidade da cultura afro-brasileira. Os
filhos-de-santo e amigos da casa criaram o Museu Ilé Ohun Lailai, uma
biblioteca, oficinas, grupos de estudo, eventos culturais e a menina dos
olhos de Mãe Stella: a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos. Novas
casas para os orixás foram construídas, as antigas foram reformadas e os
contatos com o mundo acadêmico se intensificaram: Mãe Stella é
convidada para fazer conferências em universidades inglesas e
americanas, representou o candomblé no ECO-92, promovido pela ONU e
escreveu livros.
FORÇA MAIOR
Valnísia de Airá nunca tinha imaginado assumir um cargo como o de mãe-de-santo:
-
Eu nem imaginava, não sabia, nunca ninguém tinha me dito nada que me deixasse perceber.
Na verdade, o Ilê Obá do Cobre, terreiro fundado no
Engenho Velho da Federação por sua bisavó, Sinha Flaviana, já nem
funcionava plenamente e Mãe Val tinha sido iniciada na Casa Branca, aos
16 anos:
-
Esse terreiro veio da Barroquinha há mais de um século, aqui pro Engenho Velho, segundo minha tia Edite, neta de Sinha Flaviana – conta ela, revelando que o Cobre, assim como o Afonjá e o Gantois, é também descendente direto do primeiro terreiro jeje-nagô do Brasil.
Depois de Sinha Flaviana, quem ficou à frente do
Cobre foi Maria Eugênia, avó de Mãe Val, que era iniciada, mas não
“feita de santo”:
-
Ela continuou tomando conta dos orixás e preservou a casa.
Com a morte de Maria Eugênia, o terreiro ficou cada vez mais abandonado:
-
Quando cheguei aqui, encontrei a casa no chão.
Ela explica que não se arrepende de ter seguido este caminho, apesar de não ter sido uma escolha:
-
Mas existia uma força maior, a do orixá abandonado, esperando alguém da família pra levantar o axé.
Esta cobrança, Valnísia e sua família estavam sentindo na pele:
-
Minha mãe foi desenganada pelo médicos, a família toda estava com problemas, muito desemprego. Cada dia que passava, as coisas piorando. Aí eu vinha aqui, sozinha, afastava as teias de aranha, acendia uma vela e pedia a Xangô pra ter paciência. Eu só tinha 20 e poucos anos, não podia assumir. Mas um dia eu fiz uma promessa: que se minha mãe ficasse boa, eu vinha tomar conta dele. Não disse que ia ser mãe-de-santo, disse que ia zelar por ele. Só que em uma semana minha mãe ficou boa e está aí até hoje. Então reunimos a família toda pra dar comida a Xangô. Foi muito difícil, mas todos ajudaram, muitas pessoas da Casa Branca, Dona Tatá. Depois desse amalá, tudo melhorou, as coisas começaram a caminhar. Isso há uns 15 anos atrás.
A necessidade de cercar o local, que estava servindo
como passagem para marginais e a necessidade de ocupá-lo, fizeram o
resto e o Ilê Obá do Cobre cresce a cada dia.
Além do trabalho religioso, que tem tornado Mãe Val
cada vez mais conhecida, outra marca do seu trabalho é a atuação social.
No começo, eram sessões educativas, apresentações de filmes, discussões
sobre AIDS. De quatro anos para cá, com as parcerias com a Fundação
Cultural Palmares e programas governamentias, o trabalho se
intensificou. Como o espaço é pequeno, qualquer lugar serve para as
aulas dos cursos profissionalizantes para adolescentes, informática,
telessala, alfabetização de crianças e de adultos, percussão, teatro: na
sala, no barracão, ao ar livre, em frente à casa dos orixás.
Assim como a Casa Branca, o Gantois, o Afonjá e o
Cobre, existem centenas de outras grandes e pequenas casas religiosas em
todo o Brasil que mantém a tradição religiosa africana e, ao mesmo
tempo, garantem amparo para um enorme contingente de pessoas de todas as
classes e raças. Terreiros como o Alaketu e o Bogum, de tradição jeje,
no Engenho Velho da Federação, por onde passaram grandes ialorixás como
Emiliana e Valentina Maria dos Anjos, a Mãe Ruinhó. A praça no fim de
linha do bairro tem hoje o seu nome e um busto em sua homenagem.
Mulheres como Mirinha do Portão, Mãe Elza de Oxum e tantas outras. Há
também os terreiros criados por homens, mas que em alguns períodos foram
liderados por mulheres, como Simpliciana de Ogum, no Ilê Axé Oxumarê,
que se recusou a receber dinheiro para preparar um banquete
especialmente para o presidente Getúlio Vargas, curioso sobre a comida
baiana. Homens e mulheres que, como dizia Edison Carneiro, governam pela
influência de sua força moral. Se, infelizmente, não é possível contar a
história de todos eles, que pelo menos fique registrado que cada uma
dessas casas participa, ao seu modo, de uma das mais significativas e
inspiradoras organizações que os negros e mestiços já conseguiram criar
no Brasil: o candomblé.
1Após décadas em ruínas, a igreja foi restaurada e atualmente sedia o Espaço Cultural da Barroquinha.
Parabéns.
ResponderExcluirPela pesquisa e clareza como escreveu