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segunda-feira, 4 de março de 2013

Iorubá dos terreiros

Iorubá dos terreiros

Foto de Marcio Costa: Obá Kankanfô
Agnes Mariano

“Quero ver meus filhos com anel no dedo e aos pés de Xangô”, dizia a ialorixá Aninha, fundadora do Ilê Axé Opô Afonjá. Com essa frase, a famosa sacerdotisa expressava um dos maiores desafios que enfrentam os negros e mestiços baianos: ter acesso a melhores condições de educação, emprego e moradia sem ter que esquecer e até disfarçar a herança africana. Muitos baianos corajosos aceitaram esse desafio e conseguiram manter viva até hoje – 150 anos após o fim do tráfico de escravos – a língua dos nossos ancestrais: o iorubá.
O nigeriano Ajayi Adekanye, professor de iorubá do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao), da Ufba, confirma: “A língua que se fala nos terreiros baianos é o mesmo iorubá da África”. Pelo que observou em Salvador, o iorubá que se manteve aqui é uma versão arcaica – mais antiga, com palavras que caíram em desuso -, mas ainda compreensível. “É como se você ouvisse um português da época do descobrimento falando”, compara o professor. Desde quando chegou à Bahia, Ajayi já teve contato com vários baianos que conseguem expressar-se em iorubá, principalmente através de frases simples: “A maior dificuldade é o ritmo, que todo mundo perde quando não pratica cotidianamente a língua”.
Duas características da civilização iorubá auxiliaram especialmente a manutenção da língua: o importância da oralidade – que desenvolve bastante a memória – e a sobrevivência da religião africana na Bahia, em cujos rituais a palavra falada é elemento fundamental. Nas comunidades iorubás, como os terreiros, o conhecimento é transmitido oralmente, através das cantigas, invocações, dos orikis – em forma de frase, palavra ou poema – das lendas, parábolas e vários tipos de textos sobre os ancestrais, explica a antropóloga Juana Elbein, em seu texto A expressão oral na cultura negro-africana e brasileira. Na Bahia, como sempre aconteceu na tradição africana, o principal veículo de transmissão dos valores e da linguagem iorubá foi e continua sendo a religião – entoando seus antigos cânticos de saudação aos orixás, muitos baianos tornaram-se então cidadãos bilíngües.
Como no aprendizado de qualquer língua, a melhor opção é sempre começar na infância e, se possível, dentro da família. Em Salvador, os descendentes dos iorubás mantiveram a sua língua viva da mesma forma como fazem, até hoje, muitos descendentes de italianos, alemães e de outros imigrantes que vieram para o Brasil. A comparação é feita por Antônio de Sant’Anna – o obá Kankanfô -, 81 anos, que presenciava, na infância, os seus vizinhos descendentes de alemães, de vez em quando, arriscarem alguma palavra da língua dos avós.
Na família de Kankanfô, o iorubá estava presente no cotidiano, desde quando o seu pai – Miguel Sant’Anna – lhe pedia o pão ou a farinha, às cantigas para os orixás. Ligado à religião tradicional africana por laços familiares – seu pai era ogã da Casa Branca e Kankanfô é filho adotivo de Maria Bibiana do Espírito Santo, a Mãe Senhora do Opô Afonjá -, ele encontrava nas casas religiosas um estímulo redobrado ao aprendizado da língua, aprendendo com os mais velhos e praticando com os outros garotos. Era tudo tão natural para Kankanfô que até nas reuniões preparatórias para a primeira comunhão, quando rezava o Pai-nosso em voz alta com as outras crianças, ele de vez em quando misturava o português com o iorubá. Uma distração que lhe custava algumas broncas e puxões de orelha.
O que impressiona, no caso dos descendentes dos iorubás na Bahia, é o fato de eles terem conseguido manter viva a sua tradição, apesar da condição de escravos e enfrentando até a perseguição policial às suas manifestações, como o samba nas ruas, a capoeira e práticas religiosas. Somente em 1976, na gestão do governador Roberto Santos, as casas religiosas foram autorizadas legalmente a funcionar sem precisar de licença da polícia. Até o início do nosso século, não era raro os terreiros baianos serem invadidos pela polícia e seus adeptos, espancados e presos. Segundo o antropólogo Ordep Serra, um testemunho desse período lamentável estava presente e exposto até pouco tempo atrás no Museu Estácio de Lima. “Objetos sagrados do candomblé, aprisionados pela polícia, estavam expostos ao lado de vários tipos de objetos que documentam crimes, como armas”. Adeptos da religião africana entraram com uma ação no Ministério Público para retirar os objetos da exposição.
A nova geração do povo de santo, felizmente, não precisa mais enfrentar tantas dificuldades para exercer a sua fé ou aprender o iorubá, que ainda é considerado importante, “para não ficar voando”, diz Iraildes Santos, 23, do Afonjá. Mas, como herdeiros diretos da cultura iorubá, eles sabem que não se deve ter pressa. Enquanto brinca com as outras 15 crianças do Ilê Axé Oxumaré, na Vasco da Gama, Sidnei, 5, vai mostrando o que conhece – “Roncó é o quarto onde fica a iaô, quando ela faz o santo” – e dá uma larga risada, caçoando de quem não sabe que obé é uma faca. Daniele, 14, e Juliete, 10, explicam que é ouvindo, perguntando aos mais velhos e participando do dia-a-dia do terreiro, que o vocabulário vai se enriquecendo. “Eni é esteira, batá é chinelo e açúcar é ió”, ensinam as garotas. Antes de dirigir-se a alguém mais velho na casa, elas já sabem, é sempre bom pedir licença, dirigindo-lhe um agô.
As 350 crianças que freqüentam a Escola Municipal Eugenia Anna dos Santos, no Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, aprendem em sala de aula que boa tarde é Ku axalé, desculpe é Pelé ô, bom trabalho é Ku ixé e até logo é Adolá. O hino do Afonjá, em iorubá, a criançada canta de cor durante as festas. São meninos e meninos entre 6 e 14 anos, de São Gonçalo, Pernambués, Cabula e bairros próximos. Entre os jovens da própria comunidade religiosa, apenas 10 estão nessa faixa etária e estudam na escolinha do terreiro. A língua e a cultura iorubá estão presentes, ainda, nos contos africanos que são trabalhados em sala, interligando as várias disciplinas.
Foto de Haroldo Abrantes: Terreiro do Afonjá
Para quem está ligado à religião africana, por fé ou laços sangüíneos, o contato com o iorubá é freqüente, mas cerimonioso, afinal trata-se “da língua dos orixás”, lembra o babalorixá Gean, filho-de-santo do Ilê Axé Oxumaré. Na maioria dos casos, o aprendizado e a prática acontecem simultaneamente. “De vez em quando minha tia fala iorubá com a gente quando está na mesa, para pedir alguma coisa”, conta Andreia Santos, 16, referindo-se a Mãe Stella de Oxóssi. Mas é participando dos rituais, principalmente ouvindo e cantando as louvações aos orixás durante as festas, que Andreia e Iraildes vão, aos poucos, aprendendo a língua. “Quando você canta alguma coisa errada, a pessoa que está tirando as músicas corrige, mas é tudo muito sutil, ninguém nota, só as meninas do coro e os alabês, que são os músicos”.
O Ilê Axé Asipá, na Paralela, cuida com rigor da transmissão do iorubá aos mais jovens, organizando até aulas periódicas, das quais participam também os garotos do Afonjá. As sessões sobre vocabulário e pronúncia são feitas com Mestre Didi, o primeiro brasileiro a fazer um dicionário de iorubá, na década de 50. O mestre, que não fala com jornalistas, é apontado como um dos baianos mais fluentes na língua e como um dos grandes responsáveis pela retomada de contato entre as casas religiosas baianas e a África. Filho de Mãe Senhora, uma das ialorixás mais importantes e influentes que o Brasil já teve, Mestre Didi é também sacerdote do Ilê Asipá.
Quando teve a honra de receber em sua casa religiosa a visita de um rei de Ketu, o babalorixá Silvanilton, do Ilé Axé Oxumaré, comprovou que há mesmo grandes diferenças entre o iorubá que se fala nos terreiros baianos e o que existe hoje na África. Mas, ele conta emocionado, através da música, a comunicação se estabeleceu. “Quando eu cantei, o rei ficou muito alegre, porque entendia o que eu estava dizendo. Ele dizia: ‘Orixá. Orixá’. E perguntava: ‘Como, como vocês conseguiram manter’”?.
Na religião africana, “toda a força está na palavra, tudo que se faz envolve a palavra. Por isso, acredito que o iorubá foi preservado”, afirma o paulista Riz Maglio, iniciado na religião há 22 anos. Participando de uma religião de iniciação, que valoriza a experiência e o tempo de convívio, a língua iorubá pode servir também para evitar que o iniciante ou o visitante entenda algo sigiloso que está sendo dito. Um recurso que pode ser usado também em outras situações, como precisou fazer o babalorixá Silvanilton, para conversar com seus filhos-de-santo durante uma audiência do processo que moveu contra a TV Record, por ter veiculado uma reportagem com montagens que deturpavam a sua imagem e voz.
Segundo o cientista social Marco Aurélio Luz, na tradição africana o conhecimento é um valor: quanto mais você conhece cantiga, mais valor você tem:
  • O valor não está na acumulação de bens, mas no aumento do ‘existir’, que é a prole numerosa, o número de irmãos, filhos, pessoas do grupo, uma inserção comunitária em que se é bem considerado: uma vida extensa. E para ter um aumento nesse ‘existir’, que garante uma vida tranqüila – onde você cuida muito dos outros, mas também terá muitos para cuidar de você – é fundamental a proteção da religião. E é através da liturgia, onde o iorubá tem um papel fundamental, que se pode ter contato com as entidades da religião.
LÍNGUA CANTADA
Ainda que as casas religiosas sejam os grandes difusores da língua, a presença do iorubá ultrapassa os limites dos terreiros. Está em nosso repertório verbal, em palavras que todos nós falamos, nas gírias, nos nomes das ruas, de instituições e influencia até, acreditam alguns especialistas, no português falado cotidianamente por qualquer baiano culto. Alguns exemplos são os nomes dos blocos afros Olodum e Ilê Aiyê, da banda Didá, a Avenida Ogunjá e até um recente outdoor com uma frase inteira em iorubá, anunciando uma concessionária da Avenida Bonocô que, dizem alguns, também é uma palavra africana, mas provavelmente não iorubá.
Quando iniciou a sua pesquisa de mestrado, ouvindo crianças e jovens do Afonjá, a lingüista Iracema de Souza, professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal da Bahia (Ufba), surpreendeu-se com a presença do iorubá na comunidade. “Autores como Antonio Houaiss sempre afirmaram que a influência de outras línguas no português brasileiro é mínima, mas fui percebendo que não era bem assim”. Aprofundando a sua pesquisa sobre a diversidade lingüística na realidade afro-baiana, tema do seu doutorado, a influência do iorubá despontou ainda mais. Agora, Iracema e mais seis pesquisadores da Ufba tentam mapear os detalhes da influência da língua africana: “Além das palavras em iorubá, encontramos termos do português sendo usados para veicular sentidos africanos e também certos procedimentos lingüísticos que remetem ao idioma”.
As diferenças entre o iorubá que se fala na Bahia e o que existe hoje na África são reais. Enquanto na Bahia manteve-se um iorubá arcaico, na África, a colonização européia deixou marcas profundas, na língua e na cultura locais. O professor do idioma Gilberto Baraúna explica o que aconteceu: “Durante a colonização inglesa na Nigéria, os missionários anglicanos estruturaram esse iorubá que é ensinado hoje em dia nos cursos. Eles fizeram dicionários, gramáticas e a escrita iorubá, que não existia”. Trata-se de uma adaptação, reunindo elementos de vários dialetos falados na Nigéria e incorporando também uma influência da língua inglesa, principalmente na criação de palavras que não existiam em iorubá.


Se, no iorubá nigeriano, café virou uma corruptela de coffee, na Bahia, a opção dos antigos foram as aproximações poéticas: café virou água preta, “omi dudu”, explica Lidiane Silva, 19, do Ilê Axé Oxumaré, e igreja ficou sendo casa de Deus, “ilê olorum”, diz o professor Baraúna. A maior dificuldade que os ingleses enfrentaram para sistematizar o iorubá foi também a maior vantagem com que contaram os descendentes de africanos ao redor do mundo para não esquecer a língua dos antepassados: para falar iorubá é preciso cantar as suas palavras. Ou seja, sendo uma língua tonal, o sentido do que está sendo dito é definido pelo tom em que se fala, pela sílaba que é enfatizada. Por isso, vemos tantos acentos e sinais no iorubá escrito, que tentam reconstituir a melodia da fala, mostrando se a sílaba é alta, média ou baixa, “se está em dó, ré, ou mi”.
Autor de um dicionário português-iorubá com 40 mil verbetes, ainda não publicado, o professor Baraúna garante que aprender iorubá não é difícil. “O vocabulário é pobre, como o inglês. São sete vogais e a maioria das consoantes é parecida com as nossas, mas existem algumas letras e fonemas nossos que eles não têm, como v e z”. O sinal que se coloca sob algumas letras (Ọ, Ẹ e Ş) serve para formar uma nova letra. No caso das vogais, o sinal (ponto, traço ou rabinho) em baixo do “e” e do “o”, abre o som: por isso, o “e” iorubá fica igual ao nosso “ê”, enquanto o “ẹ” equivale ao nosso “é”. O sinal grave indica uma tonalidade baixa, e o agudo, tonalidade alta, como a nossa sílaba tônica. Assim, ilé – casa – tem um significado e pronúncia diferente de ilè. O “ş” equivale ao nosso “x” e o “j” pronuncia-se “dj”, como em Djalma, já a letra “c”, que não existe em iorubá, é substituída por “k”.
Segundo os professores de iorubá, muitas razões levam jovens, adultos e até crianças a se interessarem pelo aprendizado da língua. “A clientela é variada, já tive como aluna uma garotinha de 8 anos e uma pessoa de 90. Boa parte dos meus alunos é de pessoas de terreiros, inclusive eu já dei cursos dentro de terreiros e às senhoras da Irmandade da Boa Morte”, explica Baraúna. Estudiosos da cultura africana e “pessoas que querem se identificar com a raiz e cultura negra” também são alguns dos interessados nesses cursos, conta o professor do Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) da Ufba, Ajayi. Há algumas décadas, quando lançou a sua gramática de iorubá do lingüista Edson Nunes, a extinta editora baiana Progresso pensou que a vendagem seria um fracasso, mas, em 30 dias, esgotaram-se os mil exemplares, conta o jornalista Fernando Rocha, que escreveu um livro sobre a editora.
Morar em Salvador, “uma cidade onde impera a negritude”, foi motivo suficiente para o dentista Agnaldo Magalhães debruçar-se sobre a língua iorubá. Ele já está concluindo o seu curso este ano. “Eu freqüento as aulas de quinta com o professor Baraúna e também faço o curso dele por correspondência”. Através de cartas e fitas, Magalhães mantém o intercâmbio com falantes da língua de outras cidades e estados. O respeito ao legado iorubá pode aparecer de outras formas também: a família baiana Alakija foi a primeira, no Brasil, a registrar-se com um sobrenome iorubá. “Até hoje, temos contato com parentes em Abeokutá”, conta Ana Alakija.
Quem são os iorubás
Os iorubás, chamados no Brasil de nagôs, fazem parte do grupo cultural sudanês, que incluía também os jêjes, os minas e os haussás. Os iorubás ocupavam a região do Golfo da Guiné, atuais Nigéria, Benin e Togo. Em seu livro Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo de Benin e a Bahia de Todos os Santos, o antropólogo Pierre Verger explicou, com números, porque a etnia iorubá é tão predominante na Bahia: nas últimas décadas do tráfico de escravos, principalmente durante a fase ilegal, um enorme contingente de iorubás foi trazido para cá. Um outro detalhe é que os núcleos familiares não foram desmembrados, como aconteceu aqui com outras etnias.
Se as coisas não foram boas para os iorubás que vieram para o Brasil, quem ficou na África também enfrentou muitas dificuldades. Hoje em dia, a maioria dos iorubás está no sudoeste da Nigéria, o país mais populoso da África: são 120 milhões de habitantes, sendo 40 milhões de iorubás, explica o professor Ajayi. Como acontece nos outros países africanos, séculos de escravidão e colonialismo europeu deixaram graves seqüelas. Dos anos 60 para cá, quando tornou-se independente da Inglaterra, a Nigéria já enfrentou uma guerra civil e 15 anos de ditadura. Ano passado, pela primeira vez um presidente foi eleito democraticamente: Olusegun Obasanjo, o primeiro iorubá a chegar ao poder.
Assim como o Brasil, a Nigéria ainda luta para transformar a sua enorme diversidade cultural (250 etnias) e riquezas naturais (é 8º produtor mundial de petróleo, jazidas de gás natural, carvão, estanho, banhado pelo Rio Níger) em melhores condições de vida. Violência, morte, fome e pobreza ainda fazem parte do cotidiano dos iorubás e seus descendentes dos dois lados do Atlântico, mas ninguém está pensando em desistir. Na busca de construir um futuro melhor, uma grande fonte de inspiração para baianos e africanos continua sendo o modo antigo de viver em comunidade dos iorubás, em que a tradição e a palavra dos mais velhos é sempre respeitada.

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