Mãos negras
por Agnes Mariano
Essa história começa no tempo em que um negro só se
tornava artista se tivesse, na mesma medida, força nos músculos,
habilidade nas mãos, inteligência aguda e um coração sensível. Porque as
mesmas mãos que cortavam a madeira, quebravam as pedras e forjavam o
metal para erguer paredes, monumentos e cúpulas, também eram as mãos que
esculpiam os contornos mais delicados e criavam as mais sutis
combinações de cores. Contornos e cores que são a alma das nossas
igrejas, terreiros, palacetes e casebres. Eram ourives e ferreiros,
escultores e pedreiros, pintores de telas e de paredes. Como boa parte
da mão-de-obra que ergueu o Brasil foi importada da África, esses
“artesãos-artistas” acabaram se encarregando de trazer para cá também
símbolos, formas, técnicas e cores da arte tradicional africana, que,
junto com a contribuição estética dos índios, portugueses, holandeses e
outros povos, criaram aquilo que costumamos chamar de arte brasileira.
Na África antiga, arte era assunto sério. Tão sério
que não se separava da vida. Para definir os contornos, bastavam poucos
gestos: diretos, econômicos e sem hesitações, como os dos guerreiros.
Para colorir, apenas os tons certos: o branco para ter paz, o vermelho
para ganhar coragem, o dourado para seduzir e o verde para conquistar a
saúde. Lá, eles já eram mestres na escultura, tecelagem e metalurgia,
inclusive usando técnicas que os portugueses ainda desconheciam. Quando
vieram para o Brasil, representantes dos povos africanos e seus
descendentes entraram em contato com outras formas de fazer arte, com
novos materiais e técnicas, e também com outros temas – fauna, flora,
mitos e divindades diferentes.
Primeiro, foram apresentados ao mundo cristão, ao
maneirismo e ao barroco, como auxiliares e escravos de alguns mestres
portugueses da arquitetura, escultura, pintura e entalhe ou copiando
objetos importados de Portugal. A prova de que aprenderam bem a lição
está aí para quem quiser ver. Pois, apesar da presença inicial de alguns
mestres europeus, foram negros e mulatos, em grande parte, os
responsáveis por construir e decorar tudo o que era feito nas cidades.
Alguns dos melhores exemplos estão nos trabalhos dos escultores mineiros
Aleijadinho e Mestre Valentim, dos pintores cariocas Antonio Firmino
Monteiro, Artur e João Timóteo; do pintor Jesuíno do Monte Carmelo e do
arquiteto e mestre de obras Thebas, ambos paulistas, ou do pintor
pernambucano José Rabelo de Vasconcelos. Ou ainda nos trabalhos dos
baianos Francisco das Chagas – O Cabra – e Bento Sabino dos Reis, ambos
escultores, do entalhador Vitoriano dos Anjos e do pintor José Theóphilo
de Jesus.
Mas quem conta um conto sempre acrescenta um ponto e,
além de aprender a realizar obras de arte ao gosto europeu, os mestiços
e negros também trouxeram contribuições próprias. Na verdade, eles
nunca deixaram de reproduzir aqui objetos e símbolos do imaginário
africano. Os espaços que melhor conseguiram preservar essa herança
material e simbólica foram os terreiros de candomblé, chamados pela
antropóloga Juana Elbein de “pólos de irradiação de todo um complexo
sistema cultural”, dos gostos, valores e modo de vida africano. Foi
também para uso litúrgico que, quando havia oportunidade, os escravos e
alforriados mandavam vir da África panos-da-costa, esculturas,
ferramentas e os mais diversos tipos de objetos.
A partir do século XIX, o ambiente das artes é
sacudido por grandes transformações e a separação entre artesãos e
artistas se oficializa. O trabalho livre vai ganhando espaço, as
encomendas vão deixando de ser feitas às confrarias e oficinas, os
objetos industrializados começam a substituir os artesanais. Os mestres
de ofícios vão progressivamente perdendo a importância que tiveram,
explica a historiadora Maria das Graças Leal. Eles até que se organizam,
fundam instituições como o Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, em 1872,
que “além de aplicar a beneficência, tinha por finalidade promover o
desenvolvimento e perfeição das artes e ofícios entre os sócios e seus
filhos”, diz Maria. Em 1816, a Missão Artística Francesa tinha começado a
atuar no Rio de Janeiro e, em 1877, o espanhol Cañizares havia fundado
em Salvador a Academia de Belas Artes, embrião da Faculdade de Belas
Artes da Ufba.
Os territórios passaram a ficar mais demarcados: de
um lado, pintores de tela, escultores, artistas plásticos; de outro
lado, pedreiros, ferreiros, mestres de obras, marceneiros. Só que, na
vida real, as coisas continuaram se misturando. Foi assim com Manuel
Querino, que passou tanto pelo Liceu quanto pela Academia de Belas Artes
e trabalhava como decorador, pintava panos de boca para teatro,
quadros, dava aulas de desenho e ainda atuava como jornalista e
escritor. Também com Agnaldo dos Santos, um lenhador de Itaparica que,
trabalhando como ajudante no atelier de Mário Cravo Júnior, descobriu
que era um escultor genial. E também é assim com o escultor Zu Campos,
que já foi pedreiro, com o estampador Alberto Pita, que começou com
serigrafia ou com o escultor Mestre Didi, o sacerdote-artista que faz
peças inspiradas nas ferramentas de axé. Todos eles, autores de
trabalhos conhecidos e respeitados em vários países. A lista de artistas
baianos que incorporam ao seu trabalho elementos da arte produzida na
África é enorme: nomes como Mário Cravo Júnior, Rubem Valentim, Emanoel
Araújo, Juarez Paraíso e muitos outros, que, estabelecendo um diálogo
entre essa e outras tradições, produziram uma arte sem fronteiras.
Depois que artistas como Picasso,
Matisse, Derain, Braque, entre outros, passaram a se inspirar
abertamente nas esculturas africanas e que a Europa começou a conhecer e
admirar essas peças, a arte produzida na África começou a desfrutar, em
alguns ambientes, do merecido respeito. No Brasil, entretanto, muita
gente nem precisou consultar livros de arte para conhecer os cânones da
arte africana, porque lidavam com eles desde a infância. Ela está em
cada esquina, na delicadeza dos panos-da-costa das baianas, nas cores
vibrantes dos blocos afros, na geometrização e abstracionismo de muitos
escultores, nos contornos dos objetos litúrgicos do candomblé, que têm
inspirado o trabalho de milhares de artistas.
TEMPO DO ANONIMATO
Dizem que a saudade foi inventada pelos portugueses e
talvez tenha sido mesmo. No Brasil, ao invés de se adaptar aos costumes
locais, eles fizeram o máximo para recriar aqui os gostos, cenários e
jeito de viver do seu país. Ergueram muros, sobrados, fortes, igrejas e
abriram ruas ao modo lusitano, para tentar se sentir em casa.
Entretanto, os braços e mãos que executaram essa empreitada dificilmente
eram portugueses, que preferiam ficar com a parte mais “intelectual” do
trabalho. Isso acontecia com o trabalho braçal e também com expressões
artísticas como a escultura e a pintura. E aí a mistura começou, porque
os africanos e mestiços até que tentavam imitar o padrão da metrópole,
mas não conseguiam deixar de imprimir suas próprias contribuições.
A princípio, houve um esforço para trazer alguns
mestres portugueses, que reproduziam aqui o estilo que estava em voga do
outro lado do Atlântico. Na arquitetura, alguns exemplos são Luis Dias,
responsável pela construção dos edifícios administrativos brasileiros
de 1549 a 1553, e Francisco Frias, grande expoente na arquitetura
militar no século XVII. Em Salvador, ele projetou, por exemplo, o Forte
de São Marcelo. Muitos religiosos se exercitaram também na arquitetura,
escultura e outras formas de arte. A maioria das imagens religiosas
vinha da metrópole, mas alguns portugueses, como o beneditino Agostinho
da Piedade, produziram aqui os seus trabalhos. Usando apenas barro
cozido e um forno de padeiro para assar as esculturas, ele criou
maravilhas da arte sacra brasileira.
A presença dos holandeses também causou impacto.
Durante a sua estadia no Nordeste brasileiro, Maurício de Nassau
contratou e atraiu para cá inúmeros artistas holandeses, flamengos e
alemães. Ao contrário da arte portuguesa, primordialmente centrada nos
motivos religiosos, os pintores de Nassau registraram a fauna, a flora e
o cotidiano do povo brasileiro. Segundo Sofia Olszewski, em seu livro A fotografia e o negro na cidade do Salvador,
um dos maiores representantes desse grupo foi Albert Eckhout, autor de
obras-primas da pintura realizada no Brasil colonial. Recife já contava
com mais de duas mil construções em estilo nórdico quando os portugueses
conseguiram expulsar os holandeses e, como sempre faziam, destruíram
boa parte do que havia de mais significativo e belo.
Desde essa época já havia a concepção de que tudo o
que vinha de fora era melhor do que a produção nacional. Como era
impossível trazer para cá todos os artistas europeus necessários para
atender à demanda, o jeito foi ir treinando os brasileiros mesmo para
fazer os altares, pintar quadros e forros, erguer os palácios, esculpir
imagens, produzir a prataria. Nas grandes cidades, como Salvador,
Recife, Rio de Janeiro e Ouro Preto, onde havia muito trabalho, a
participação dos escravos e alforriados foi especialmente maior.
Uma parte do aprendizado se deve aos religiosos, que
eram, eles próprios, hábeis em muitos ofícios, conta o especialista em
história da arte José Luiz Menezes, em um dos artigos do livro A mão Afro-brasileira:
- Foram, assim, os jesuítas os que, talvez em paralelo com os mestres de obras vindo para os engenhos, logo no início da colonização, se preocuparam com o ensino dos ofícios aos negros e conseqüentemente aos mulatos, aos pardos, naquelas oficinas.
A outra fonte de aprimoramento foram as “tendas”,
“bancas” ou oficinas dos mestres de ofícios, algo similar às corporações
de ofícios medievais, com mestres, oficiais e aprendizes.
Na maioria das nossas oficinas, então, negros e
mestiços se misturavam com europeus menos abastados. Admitidos como
mão-de-obra escrava ou barata, mediante um aluguel pago aos seus donos,
eles iam se aprimorando em várias profissões: eram ourives, pedreiros,
carpinteiros, escultores, alfaiates, pintores. Sabe-se que, por
trabalhos extras que realizavam, muitos desses homens conseguiam comprar
a alforria e abrir suas próprias oficinas, mas a maioria dos seus nomes
permanece desconhecida para nós. Inclusive porque, nessa época, muitos
trabalhos não eram assinados ou registravam apenas o nome da oficina ou
responsável. O museólogo Osvaldo Gouveia explica o alcance disso:
-
Nas pesquisas que estamos fazendo no Recôncavo atualmente, a nossa equipe já levanta a possibilidade de estar descobrindo um grande escultor ou atelier baiano, que trabalhou intensamente nos séculos XVIII e XIX. São peças semelhantes: madonas com mais de 90cm.
Mas nem todos os nomes foram esquecidos.
“Filho de uma escrava e ele próprio escravo, o pintor Manuel da Cunha,
nascido no Rio de Janeiro em 1737”, tinha um talento tão grande que
conseguiu ser alforriado, aperfeiçoar-se em Lisboa e dedicar-se até o
final da vida à pintura, escultura e às aulas, que ministrava em sua
própria casa, no Rio de Janeiro, conta o pesquisador de arte José
Roberto Leite em seu artigo Negros, pardos e mulatos na pintura e na escultura brasileira do século XVIII.
Dois dos maiores escultores brasileiros de todos os tempos são
certamente Mestre Valentim e Aleijadinho. Ambos filhos de africanas com
portugueses, tiveram a sorte de não serem rejeitados por seus pais e,
assim, encontraram meios de desenvolver seus excepcionais talentos,
assegura a arqueóloga e especialista em história da arte Myriam de
Oliveira em seu artigo O Aleijadinho e Mestre Valentim:
- Dois verdadeiros artistas e não meros imitadores, ambos introduziram inovações na adaptação dos modelos europeus ao meio colonial.
Na Bahia, os nomes mais antigos que a tradição oral
preservou foram os dos escultores Francisco Manoel das Chagas, “O
Cabra”, e Bento Sabino dos Reis. Há várias lendas em torno do Cabra e
seu trabalho. Atribui-se a ele, por exemplo, uma misteriosa escultura
que “fora embarcada na Bahia, em 1764 com destino ao Rio Grande do Sul,
porém o barco que a transportava por três vezes tentou chegar ao destino
sem o conseguir”, conta Leite. O jeito então foi deixá-la permanecer em
Santa Catarina, onde passou a ser venerada e deu origem à Irmandade do
Senhor dos Passos. Trabalhando numa oficina próxima ao Elevador Lacerda,
em Salvador, o artista foi contratado em 1758 pela Ordem Terceira do
Carmo para esculpir três imagens. E é lá onde estão, até hoje, duas
impressionantes esculturas em madeira – “Senhor Morto” e “Cristo na
Coluna” – que comprovam a genialidade desse artista que produzia imagens
com um realismo e dramaticidade singulares, mas que morreu na miséria.
Sobre Bento dos Reis sabe-se menos ainda.
Nascido em Salvador no século XVIII, faleceu em 1843 na mesma cidade.
Segundo o artista e pesquisador Manoel Querino, em seu livro Artistas Bahianos,
são de Bento algumas imagens da Ordem Terceira do Carmo, Igreja de São
Francisco, Matriz de Santana, Igreja de São Francisco de Paula e
Convento da Soledade. Seria dele também a imagem que iniciou, em
Salvador, a devoção ao Senhor dos Passos dos Humildes. O detalhe
interessante é que essa peça só pôde ter esse destino por um acidente:
quem a encomendou, por algum motivo, não voltou para reclamá-la.
Na pintura, um dos nomes mais importantes é o de
Theóphilo de Jesus, que viveu entre o século XVIII e começo do XIX e foi
discípulo do famoso mestre José Joaquim da Rocha. Sendo um homem
generoso, José Joaquim investiu no aprimoramento do discípulo e “decidiu
enviá-lo às suas custas a Portugal, para o que comprovadamente contraiu
um empréstimo”, relata Leite. Quando retornou a Salvador, Theóphilo
iniciou uma vasta produção de telas e pinturas em igrejas. No seu
trabalho, ele exibe sinais de mudanças, explorando temas não religiosos e
optando por uma maior suavidade no desenho e na pintura. São de sua
autoria, por exemplo, os painéis dos corredores laterais da Igreja do
Bonfim, a pintura no teto da Igreja do Carmo e as famosas telas que
simbolizam a Europa, a Ásia e a África, que estão no Museu de Arte da
Bahia. Mesmo sendo pardo e casado com uma africana, num Brasil ainda
escravocrata, ele chegou a gozar, em vida, do prestígio que merecia.
Pelo poder político e econômico da Igreja, as encomendas no período colonial tinham quase sempre um caráter religioso.
-
Por isso as maiores expressões da arte brasileira desse período – pinturas, esculturas, mobiliário, azulejos – têm motivos religiosos – explica o arquiteto Francisco Senna.
Peças encomendadas por igrejas, irmandades e famílias
ricas. Nisto, os portugueses tinham muito em comum com os povos
africanos, que também produziram durante séculos objetos de rara beleza
com finalidades litúrgicas ou para celebrar a realeza.
INSPIRAÇÃO AFRICANA
Se a espécie humana, comprovadamente, deu os seus
primeiros passos na África, há dois milhões de anos – em alguma parte da
savana equatorial, provavelmente no vale do rio Omo, na Etiópia – a
arte, certamente, também nasceu por lá. E, num continente onde os homens
disputam o espaço com leões, rinocerontes e girafas, num cenário onde
se alternam desertos, savanas, florestas e montanhas e onde se
desenrolou uma história cheia de guerras e disputas, os artistas não
poderiam criar de outro jeito: com vigor e profunda conexão com o mundo à
sua volta. Nos seus momentos de maior colorido e detalhismo, a arte
africana parece ser uma celebração à vida, num lugar onde são tantos e
tão fortes os estímulos aos sentidos. Em outros momentos, ela assume uma
solenidade absoluta – sem cores ou sorrisos – ou até parece desejar
assustar quem a vê, como se, através de uma beleza agressiva, os
artistas quisessem nos alertar sobre quão desafiador é viver.
Desde o começo, os suportes foram variados – paredes
de cavernas, pedaços de madeira, metal, pedras, pele de animais. Depois,
os recursos, técnicas, cores e temas se expandiram ainda mais e a arte
africana passou a ser conhecida em todo o mundo. Hoje em dia, ela está
presente tanto em museus de antropologia como em elegantes galerias.
Entretanto, o que acabou sendo conhecido como “arte africana clássica”
são principalmente as esculturas antigas, feitas em madeira e metal,
como os famosos bronzes da Nigéria e as esculturas de Ifé.
Ao contrário do que os padres, senhores de engenho e
artistas portugueses pensavam, os africanos que vieram para o Brasil já
conheciam muito sobre arte. Um dos trabalhos mais antigos que se tem
notícia são as pinturas de animais e pessoas feitas na Namíbia há 20 mil
anos. A metalurgia foi praticada em toda parte. Na cerâmica, algumas
das peças mais antigas já encontradas são as da civilização Nok, com
mais de 2.500 anos. Em sua casa, cercada de objetos de arte – africanos e
de outras procedências – a antropóloga Juana Elbein explica:
-
O que mais se conhece são os trabalhos em madeira, que chamaram muito a atenção dos primeiros ocidentais. São feitos com madeira muito dura, como ébano. Também se trabalhava muito em marfim. Hoje não se faz mais por causa da proibição de usar esse material.
Enquanto passeia entre as peças que compõe o acervo
do Museu Afro-Brasileiro do Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba –
do qual é diretor – o museólogo Marcelo Cunha fornece mais algumas
pistas para a compreensão dessa arte:
-
A estética é essencial na vida das sociedades tradicionais. As marcas nos corpos, pinturas em tecidos, esculturas, máscaras, cetros e altares são um suporte da memória, têm um forte conteúdo simbólico ligado à história do grupo e dos líderes, são objetos articuladores do cotidiano.
Ou seja, na forma antiga de produzir arte
na África, os objetos não eram feitos apenas para serem colocados num
lugar especial, separado da vida, como fazemos hoje em dia. A
preocupação estética estava presente tanto em objetos decorativos – como
braceletes e pingentes – quanto nos pesos e balanças feitas pelo povo
ashanti, em Gana, ou num simples tamborete, que podia ter
impressionantes figuras esculpidas em sua base, como se fossem elas que
estivessem sustentando o peso.
A organização do trabalho artesanal e artístico não
diferia muito do que aconteceu em outros lugares do mundo: profissionais
reunidos em oficinas e corporações, que atendiam às solicitações dos
clientes. Em muitos locais, os reis, chefes e famílias da corte foram os
grandes impulsionadores dessas oficinas. Entre os iorubás da Nigéria,
os kuba do Zaire e os bamoum de Camarões, alguns escultores se
destacaram e tinham clientela cativa. Quando esteve na África, Elbein
conheceu, por exemplo, o escultor Fakeye, continuando uma tradição que
já existia em sua família há cinco gerações. Nem sempre, entretanto,
havia a figura do especialista, alguém que se profissionalizava na
feitura desses objetos. De qualquer forma, na arte antiga, as peças eram
sempre produzidas em consonância com tradições da comunidade e com
finalidades específicas.
As celebrações coletivas – ligadas à época de
plantio, colheita, rituais funerários, fecundidade e outras – também
foram grandes agentes motivadores da arte, principalmente através das
máscaras, algumas muito grandes e pesadas, que são usadas acompanhadas
de cânticos, roupas e danças. Algumas das mais famosas são as máscaras
gueledés, objetos fundamentais nos rituais dessa associação feminina
criada no reino de Ketu, conta o antropólogo Renato da Silveira.
Exemplares dessas máscaras que estão no Museu Afro-Brasileiro e também
em algumas das mais antigas casas religiosas de Salvador expressam bem a
“linguagem proverbial” que tantas vezes se percebe na arte africana,
isto é, a transmissão de ideias com um fundo moral através da
representação de uma situação ou história, define o museólogo Marcelo
Cunha. Além das máscaras, uma infinidade de outros objetos simbólicos
ligados a festas, rituais e ao culto aos orixás era criada pelos
artistas. Muitos desses símbolos foram fielmente transplantados para o
Brasil e outros foram recriados, combinando memória e criatividade.
Durável e brilhante, o metal foi usado com muitas
finalidades na África. Daí a importância dos ferreiros, aqueles que
sabiam lidar com temperaturas elevadas o suficiente para permitir a
manipulação dos metais. Ferramentas, objetos do cotidiano, esculturas,
adereços que inspiraram os nossos balangandãs e, é claro, armas. Ferro,
cobre, bronze, latão e outros metais serviram também como matéria-prima
de algumas das melhores expressões da arte africana: as esculturas de
metal fundidas com o processo da cera perdida. Essa técnica foi
provavelmente originária de Ifé, entre os séculos XII e XIII, como uma
evolução da técnica do barro cozido.
Na madeira, se esculpia quase tudo: máscaras,
esculturas, recostos de cabeça, cadeiras, bancos, bastões, recipientes e
centenas de outros objetos. Do imponente trono ao simples objeto do
cotidiano, todos podiam ser cuidadosamente elaborados, como comprova a
antropóloga Juana Elbein, mostrando um curioso espelho de madeira que
ganhou na África: além de ter uma tartaruga e um pássaro esculpidos em
cada extremidade, o objeto fica em pé sozinho. A madeira foi,
provavelmente, o suporte onde a arte africana mais recorreu à
geometrização das formas.
-
São figuras baseadas no triângulo, losango, retângulo ou que usam essas formas na definição dos traços e adorno das imagens – explica Cunha.
Aliás, esse aspecto da arte africana até gerou
polêmicas. Hoje em dia são conhecidos muitos exemplos de trabalhos que
demonstram um cuidado minucioso com a representação de rostos e corpos
humanos, como a escultura do povo baulé, na Costa do Marfim, e a arte de
Ifé e do Benin. Mas, como são abundantes as peças que recorrem à
geometrização ou representam partes do corpo de forma exagerada ou
alterada:
-
Esse recurso de figuração – usado para se destacar um aspecto da história, um mito que está sendo contado – foi traduzido muitas vezes como incompetência desses grupos em trabalhar com os cânones geométricos naturais. Hoje sabemos que não é nada disso, há todo tipo de forma de expressão na África. Na verdade, trata-se de uma arte extremamente conceitual – explica Cunha.
No começo do século XX, a descoberta da arte de Ifé surpreendeu até os pesquisadores. Em seu livro A enxada e a lança – a África antes do portugueses, o embaixador Alberto da Costa e Silva dedica algumas páginas ao tema.
- Foi esta arte admirável o que deu fama a
Ifé. Tem ela causado pasmo, dúvidas e interrogações, desde que Leo
Frobenius, em 1910, desenterrou do bosquete de Olocum, o deus do mar, 14
cabeças em terracota, de uma serenidade e limpeza de formas e de uma
verdade à vida, que as colocam no nível da escultura clássica grega e do
Renascimento italiano.
[...] Na arte subsaariana, há também uma vertente realista, que vem de bem longe, como o demonstram certas peças de Nok, e chega ao nosso tempo, nas máscaras gueledês [...], nas máscaras quiocas, na imaginária luba. O que faz a escultura de Ifé ímpar na África negra são os cânones a que obedece esse realismo. A técnica, a forma, o conteúdo, o sentido de medida e equilíbrio, a visão intelectual da face humana – tudo, ou quase tudo, poderia inseri-la na extensa tradição que vem do Egito, se afirma na Grécia e se prolonga em Roma e na Itália renascentista.
Os mistérios relacionados à arte de Ifé
não param por aí. Frobenius comprou de um sacerdote uma cabeça em bronze
do deus Olocum, que foi para o British Museum. Só que, anos mais tarde,
se descobriu que a peça do museu era uma cópia recente. Outra incógnita
diz respeito ao desaparecimento dessa arte naturalista, assim como do
domínio da técnica de fundição do cobre e suas ligas e também a de
produção das miçangas de vidro . Entre as hipóteses levantadas para esse
desaparecimento, Costa e Silva registra:
- Chega ao nosso tempo esse rumor: o da matança de todos os artistas, depois que conspiraram com alguns cortesãos, para esconder a morte de um oni muito amado. Um toreuta – diz-se – teria feito a imagem do falecido rei e a colocado no trono. Descoberto o truque, o príncipe herdeiro ordenou a execução de todos os escultores.
Mas ele próprio não considera essa opção convincente,
ainda que o fato possa ter ocorrido. Um outro centro artístico
produtivo foi o da corte do Benin. Caçadores, chefes, animais, figuras
simbólicas eram retratadas (em terracota ou metal) em máscaras, bastões,
placas e os mais diversos objetos. Um viajante holandês que conheceu o
palácio real do Benin no século XVII explica que ele era cercado por
pilares de madeira revestidos de cobre, onde estavam representadas cenas
de vitórias. Apesar de muita coisa ter se perdido com o tempo ou estar
ainda para ser descoberta, hoje em dia, muitas dessas peças já foram
localizadas, sendo que a melhor parte delas foi parar em coleções de
particulares ou museus europeus. Costa e Silva analisa a arte do Benim,
comparando-a à produção de Ifé:
- Enquanto a arte de Ifé, pelo sentido de
medida e equilíbrio, pela serenidade das formas, pela economia de meios,
se inscreve na linha do que na Europa se denominou ideal clássico, a do
Benim pertence à vertente do barroco.
A principal diferença estaria, portanto, na própria maneira de modelar as figuras: suave, rasa, a evitar os contrastes, em Ifé; dramática, escavada, a acentuá-los, no Benim.
Portanto, foi todo esse universo de símbolos, cores e
técnicas que os africanos trouxeram consigo quando vieram para o
Brasil. Como viajavam às pressas, seminus e a contragosto, a bagagem
teve que ser transportada apenas na memória. Um terreno fértil para a
criatividade, as recriações, mas, ainda assim, capaz de guardar os
elementos essenciais.
PARA USO LITÚRGICO
Um estranho objeto foi encontrado na Praia da
Calçada, no século XIX: uma escultura de madeira envolvida num pano alvo
de linho, “o que quer dizer que tendo falecido o pai ou mãe de terreiro
a quem pertencia, foi ele lançado ao mar com outros objetos do seu
peji, por não haver quem o quisesse substituir na direção do culto”,
explicou o médico e pesquisador de temas antropológicos Nina Rodrigues. O
mais intrigante sobre essa peça, entretanto, é o seu hibridismo: um
típico objeto litúrgico afro – um cofre semelhante a um aperê de Ifá,
recipiente com tampa usado para guardar sementes usadas na adivinhação –
sobre uma base onde estão esculpidos dois homens e duas mulheres
envolvidos na caça a um jacaré. Sendo que, quem tem a honra de aparecer
montado sobre o animal e empunhar a faca é um homem “de raça branca, de
olhos azuis e dentes enormes”, descreve Nina. Portanto, mais do que uma
simples repetição da arte africana, a peça demonstra a adaptação da
expressão artística ao contexto local. Um fruto da arte mestiça que foi
sendo, aos poucos, criada no Brasil.
Claro que não foi fácil para os subalternos preservar
elementos simbólicos da sua cultura. As restrições sempre existiram,
seja ao exercício de alguns ofícios, à representação pública de certos
símbolos ou à manutenção de instituições que preservavam aspectos da
cultura africana. Ainda assim, era tão grande a quantidade de negros e
mestiços e tão intenso o comércio com a África que, principalmente a
partir do século XIX, tornou-se possível importar objetos, tecidos,
cores e formas daquele continente. Os nomes dos artistas brasileiros
mais antigos que preservaram esses referenciais estéticos são difíceis
de saber, mas não há dúvida que a religião funcionou como grande agente
catalisador. Minas Gerais, Alagoas ou Bahia: por toda parte, às
escondidas ou apelando para o sincretismo, foi nascendo a arte sacra
afro-brasileira.
As esculturas, recipientes e ferramentas de axé eram
fundamentais para o culto aos orixás, por isso, muitos objetos foram
importados da África ou fabricados no Brasil. Quem analisou alguns
exemplares dessas peças, ainda no século XIX, foi Nina Rodrigues, em seu
livro Os africanos no Brasil. Além do cofre encontrado na
praia, ele se refere a várias peças com os atributos dos orixás e
representações de homens e mulheres africanos, identificados pelos
traços, roupas e escarificações. Ele cita e mostra também objetos que
exibem marcas nítidas de misturas culturais, como uma pequena Oxum, com o
torço nu e saiote, ao modo africano, e com traços fisionômicos
mestiços. Imagens que, naquela época, eram confiscadas pela polícia,
quando os terreiros eram invadidos. Muitas delas foram parar no acervo
do Museu Estácio de Lima e hoje estão expostas no Museu da Cidade.
Sendo ourives ou ferreiros, muitos se esforçaram
também para não deixar desaparecer a arte de manipular os metais,
aliando técnicas que tinham aprendido bem longe daqui com o aprendizado
local. No Brasil colonial, trabalhar com metais preciosos como ouro e
prata era legalmente proibido aos negros, índios, muçulmanos e judeus. O
artista plástico e pesquisador de história da arte Emanoel Araújo,
organizador de um livro fundamental sobre o tema – A mão afro-brasileira -,
cita dois decretos portugueses, um de 1621 e outro de 1766, ordenando
que “nenhum negro ou mulato ou índio, posto que forro, exercesse a arte
da ourivesaria”, mas também registra que, na prática, isso não era
respeitado. Em um documento do século XVIII, por exemplo, ele encontrou
referência a uma “Corporação dos Ourives Negros de Santo Amaro”. Afinal,
que português ou brasileiro rico iria se ocupar de um serviço que
escravos podiam fazer?
Só que, além dos anéis, braceletes,
brincos, pulseiras e balangandãs – pingentes em forma de figas, chaves,
medalhas, peixes, etc. – ainda era preciso providenciar as ferramentas e
adereços dos orixás. Entre os que atuaram nesse ramo no século XIX,
ficou, por exemplo, o nome do africano Rodolfo Martins de Andrade, o Tio
Bamboxê Obitikô, responsável pela criação do primeiro candomblé baiano
junto com Iyá Nassô. Foi ele o autor da coroa de cobre dedicada a Xangô
que existia na Casa Branca até a década de 60. Em geral, é difícil saber
o nome do autor das peças mais antigas, restando apenas o nome de quem a
possuiu, como um capacete de orixá que foi da mãe-de-santo Mirinha do
Portão, que o artista plástico Gilmar Tavares está restaurando. Entre as
obras-primas de anônimos, ele lembra ainda de um adjá que pertenceu à
ialorixá Samba de Amongo.
Entre os especialistas em ferramentas de axé do
século XX, a tradição guardou os nomes de Mário Proença e Mimito. Agora,
um dos que prossegue com esse trabalho é Gilmar Tavares, que se
considera um discípulo dos dois. Sempre gentil e tranqüilo, Gilmar nem
parece o herdeiro de uma tradição que teve tanta dificuldade para
sobreviver. Aliás, até o seu difícil trabalho – transformar latão,
bronze, cobre e alpaca em ferramentas, coroas, braceletes, capacetes,
cetros, couraças, espelhos e leques – parece ser feito sem esforço, com
suavidade:
-
Não é difícil manipular o metal, o que demora é a criação, é o desenho que eu faço antes. Às vezes a ideia me vem num sonho, numa igreja, lendo um livro.
-
Peguei uma peça e senti que podia e queria fazer aquilo. Na época, eu era bancário, trabalhava com computador. Todo mundo ficou chocado – conta ele, rindo.
O aprendizado, explica Gilmar, veio da sua iniciação religiosa:
-
Sou ogã do terreiro Tingongo Muende. Sou filho de Oxalá.
De Mimito, ganhou uma ferramenta “que tinha sido do
pai dele” e valiosas orientações sobre os segredos dos metais. Aos
poucos, seu trabalho foi sendo conhecido e hoje é difícil encontrar um
terreiro em Salvador que não tenha alguma ferramenta sua. Depois, também
meio por acaso, suas peças foram chegando às exposições, museus e
galerias, sendo reconhecidas como arte:
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Tenho trabalhos expostos na Alemanha, Chicago, França, Portugal, Argentina e em vários estados do Brasil.
Apesar de tudo, o ofício continua sendo difícil e
pouco valorizado. Gilmar não esconde, entretanto, que há tempos pensa em
difundir os conhecimentos que adquiriu e tornar esse tipo de arte
acessível a um público maior. O sonho ganhou vida através do projeto
Casa dos Objetos Mágicos, onde, junto com a artista plástica Eneida
Sanches e outros profissionais, passou a ensinar a jovens a arte de
confeccionar ferramentas de axé. Outra ideia é aliar as peças metálicas
aos tecidos finos bordados pela sua irmã Teresa Conceição. Aliás, os
tecidos também são um capítulo à parte na arte africana.
Outro herdeiro de Bamboxê Obitikô e dos outros
antigos artistas das ferramentas de axé é Mestre Didi, mas com uma
diferença: como matéria-prima, ele só usa nervuras e palma de palmeira,
couro, contas, búzios e palha da costa. Isto porque a sua arte nunca se
separa das suas obrigações como sacerdote do panteão da terra, cujos
preceitos devem ser respeitados. Pois foi como assogbá, título
confirmado em 1936 por Mãe Aninha, que Didi aprendeu a conhecer e
manipular esses materiais e a produzir objetos rituais que hoje são sua
fonte de inspiração.
No seu trabalho, ele produz “recriações” do que
aprendeu desde pequeno com mestres do Ilê Axé Opô Afonjá sobre o
universo de Nanã, Obaluaiyê e Oxumaré, explica o artista plástico,
compositor e professor Jaime Sodré, que escreveu uma dissertação de
mestrado sobre a obra de Didi. No seu trabalho, Didi não usa máquinas,
só agulhas, tesouras, vazadores, facas, alicates e um facão amolado.
Hoje em dia, por causa da idade, uma das suas maiores dificuldades é
conseguir as nervuras das palmeiras, que precisam ser retiradas de uma
parte muito acima do solo, conta Sodré.
Filho da famosa Mãe Senhora e, desde
1975, alapini no culto aos Eguns, Mestre Didi é um dos artistas
brasileiros que mais profundamente buscou conhecer e estudar a África.
Como resultado, esculturas intrigantes, baseadas em emblemas dos orixás
da terra e também em mitos e atributos dessas divindades, que são
primordialmente referências à natureza. Portanto, não há como separar o
seu trabalho do universo simbólico e religioso dos iorubás. Para
exemplificar, a antropóloga Juana Elbein, esposa de Mestre Didi, mostra o
que pode estar contido no símbolo de um orixá:
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Ossain é o orixá da vegetação e de tudo o que emerge dela, como a medicina. Por isso, ele é representado por uma imagem quase abstrata, que sintetiza o poder e funções dessa entidade: uma árvore simbólica com sete galhos – um número simbólico – que tem um pássaro pousado na sua copa.
ARTE BRASILEIRA
Os amigos o chamavam de “Príncipe dos Hauçás”, numa
referência à sua gentileza no trato, constante elegância, altura elevada
e porte atlético. Um corpo lapidado em anos de trabalho duro, cortando
lenha para as caieiras de Itaparica. Um dia, Agnaldo dos Santos resolveu
tentar a sorte e foi parar ali no Porto da Barra, ponto de passagem
obrigatório para os saveiristas do Recôncavo. Andou poucos metros e deu
de cara com o atelier do escultor Mário Cravo Júnior e mais um bando de
jovens artistas promissores dos anos 50. Pediu emprego e foi aceito,
para ser um faz-tudo. Simpático, trabalhador e discreto, o “príncipe”
cativou todo o grupo e foi ficando, conta Cravo Junior. Aprendeu a
manipular o ferro, o gesso, o oxiacetileno, até quando lhe pediram para
fazer alguma coisa com a sua antiga e íntima companheira de trabalho, a
madeira. Aí, finalmente, ele se tornou um rei. A escultura de Agnaldo
dos Santos, que infelizmente morreu muito jovem, desconcertou críticos e
amantes da arte, tanto pela sua qualidade como pela inexplicável
semelhança com a arte clássica africana.
Como ocorreu com Agnaldo, o arrebatamento
pela arte pode acontecer casualmente, sem planejar. Numa sala de aula,
percorrendo um museu, olhando um livro de arte ou trabalhando com
qualquer tipo de material, de repente, um novo mundo se descortina. Na
Bahia, o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola de Belas Artes foram
instituições fundamentais para várias gerações de artistas, tanto pelo
ensino de técnicas, quanto por mostrar a jovens talentosos novos
referenciais estéticos. Foi assim que muitos deles foram apresentados à
arte africana e que acabaram percebendo a riqueza do universo simbólico
que tinham à sua volta. Em outros casos, nem foi preciso tanto
didatismo: o aprendizado como tecelão, serígrafo ou pedreiro foi
suficiente para dar vida à expressão artística.
Era preciso conseguir o dinheiro, encomendar a algum
comerciante que fosse para a África e aguardar meses para saber se a
encomenda viria e, principalmente, na cor certa. Essa era a sina das
baianas para conseguir os seus panos-da-costa, mas a demora valia à
pena. Leves, delicados, coloridos e com a sutileza típica dos trabalhos
manuais, esses tecidos que são usados como xale garantiam metade do
charme e elegância das suas usuárias. Feitos de algodão ou palha da
costa e parte indispensável do figurino das mães-de-santo, eles são
considerados por alguns como talismãs, uma proteção. O que se sabe com
certeza é que, nesses tecidos, também conhecidos como panos de Alaká,
exibe-se muitas vezes as mais requintadas manipulações de cor da arte
africana.
Como a espera era grande e os preços eram altos,
felizmente, alguém resolveu iniciar a produção local do tecido. Um dos
mais famosos tecelões do ramo foi Mestre Abdias do Sacramento. Natural
de Salvador, ele aprendeu a técnica com o padrinho Alexandre Gerardes,
um dos pioneiros na fabricação nacional desse tecido, e dele herdou um
antigo tear africano, que hoje está no Instituto Feminino da Bahia.
Mestre Abdias já se foi, mas outros tecelões baianos estão prosseguindo
com a tradição. Um deles é Zelito José Pinto, que explica um pouco do
mistério em torno do tecido.
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Dá muito mais trabalho, leva muito tempo pra fazer, porque, pra ficar leve, ele tem que ser feito com linha bem fina. Você trabalha, trabalha e não vê o resultado.
Mesmo com a experiência de quem já está no ramo da
tecelagem desde os 13 anos, quando aprendeu a tecer em casa, com o
padrasto, Zelito conta que leva dois dias e meio fazer um pano-da-costa
com 70 centímetros por dois metros. Com o seu colega tecelão Rodrigo
Velloso, ou no Instituto Mauá, onde dá aulas, Zelito vai pacientemente
fabricando alguns panos. Uma missão partilhada também pela tecelã Maria
Marta Muniz do “Arte Tear”. Enquanto aguardam outros candidatos ao
posto, Rodrigo e Zelito explicam porque são tão raros os especialistas
em pano-da-costa:
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Falta paciência. Os mais jovens começam, aprendem e depois desistem.
Para eles, entretanto, além de um espaço de expressão e criatividade, tecer tem outra grande vantagem:
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É como descansar um pouquinho do mundo.
Os panos-da-costa também são uma fonte de inspiração
para o artista plástico Alberto Pita, que preferiu entretanto investir
no tingimento, chegando assim à arte da estamparia. Na África antiga,
fabricava-se os adirês, tecidos tinturados por um processo similar ao
dos indianos, espalhando goma antes de mergulhar o tecido no pigmento,
para produzir efeitos cromáticos. Pita não precisou voltar tanto no
tempo, preferindo usar o que tinha aprendido na serigrafia para fazer as
suas primeiras estampas para indumentárias de blocos afros baianos:
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Isso começou lá nos anos 70. Estavam surgindo alguns blocos, me pediram pra fazer as estampas e eu resolvi usar uma temática afro, com formas, ferramentas e símbolos de orixás.
A influência básica era a convivência com os terreiros e com sua mãe, a ialorixá Santinha, do Ilê Axé Oyá:
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Ainda me inspiro muito nos bordados, richeliês e fuxicos que ela faz.
Além dos símbolos, Pita mergulhou também nas cores da
África, de uma nova África, aquela dos movimentos de libertação do
colonialismo, do pan-africanismo:
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Por isso cheguei ao amarelo, vermelho e verde do Olodum, onde trabalhei por 15 anos. Também fui colocando outras cores: em 1990, usei o preto e branco; em 1992, optei pelo lilás – conta ele, que trabalhou ainda para afoxés e blocos como Badauê, Apaches, Guaranis, Muzenza, Obá Layê, Timbalada e hoje preside o Cortejo Afro.
Alberto estava também retomando aqui as mesmas cores
vibrantes e formas simbólicas que estão nas antigas tapeçarias do Daomé
ou nas bandeiras do povo fante. O que havia em comum era o hábito de se
inspirar no colorido do mundo à sua volta. Um colorido que hoje ele tem
levado a exposições internacionais, capas de CDs, cenários de shows,
estamparias para residências, roupas para associados e cordeiros de
blocos, “pra não ficar parecendo uma favela protegendo a classe média” e
a instituições como o Projeto Axé, onde é consultor.
Nascido em Vitória da Conquista, em 1939, Zu Campos
iniciou-se com o próprio pai, um mestre de obras, que lhe apresentou os
segredos das pedras, do cimento, da madeira. Depois, em Salvador,
trabalhando como cicerone do Museu de Arte Sacra, descobriu os encantos
dos objetos sacros cristãos:
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Ia lendo tudo, conhecendo as peças, procedência e autor.
Quando criou coragem, começou a se exercitar.
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Primeiro, copiando os azulejos, com telas e tinta que eu mesmo fazia.
Até que conheceu um grupo de entalhadores de Olinda
que precisavam de um lugar para preparar a próxima exposição. Zu cedeu o
espaço que tinha e, observando com atenção, acabou aprendendo um novo
ofício:
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Amolei uma chave de fenda, improvisando um formão e fiz meu primeiro trabalho.
Em apenas um ano de produção foi convidado para expor na reinauguração do Teatro Castro Alves, em 1967.
Daí, o “anjo barroco” de carne e osso, como Jorge
Amado o definiu, não parou mais. Morou um tempo no Rio, usando o atelier
que tinha sido de ninguém menos do que Portinari, trabalhou muito –
“esculturas, portas, brasões” -, deu muitas aulas e cursos “ensinar
passou a ser a minha religião” e expôs no Brasil todo.
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Aí senti necessidade de ter mais teoria e fui fazer universidade. E foi na Escola de Belas Artes que comecei a me interessar pelo temas afros, a freqüentar candomblés e a me introduzir no culto. Hoje sou um zelador de terreiro, sei o que posso explorar ou não no meu trabalho.
Passou a fazer então murais, esculturas, altares,
máscaras, estandartes, ferramentas e decorações carnavalescas com
inspiração afro.
Hoje em dia, o trabalho de Zu é completamente
ecumênico: com o mesmo carinho, ele produz orixás como os que estão no
Museu de Antropologia de Frankfurt; imagens de santos, como o Cristo que
consumiu uma tonelada de barro e aventura-se até por Budas.
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Estou finalizando um para a Casa do Japão, feito em massaranduba, que vai ficar ao ar livre.
Ele prossegue também com suas aulas de iniciação à
escultura no Museu de Arte Moderna da Bahia, como faz há 17 anos e ainda
compartilha o seu atelier na Rua Areal de Baixo, no Dois de Julho, com
aprendizes curiosos.
No seu trabalho, portanto, Zu Campos sintetiza bem o
que de mais importante aconteceu na arte brasileira. Muito mais do que
apenas a preservação de tradições importadas, criou-se uma arte nova,
que incorpora, na mesma milagrosa medida, a herança de quem veio para cá
como chefe e de quem veio como escravo, dos patrões e dos empregados.
Um fenômeno, apesar de todas as suas imperfeições e limitações, muito
inspirador.
As imagens foram reproduzidas dos livros
“A mão afro-brasileira”, “África, o despertar de um continente”,
“África”, do catálogo “Mestre Didi” e do fascículo 8 da coleção
“Memórias da Bahia”
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